1.Violonista e professor de etnomusicologia na Miami University em Oxford, Ohio, EUA, com especialização em cordafones e música luso-brasiliera.
2.Diretor do projeto Museu da Música de Coimbra, Diretor da Coimbra Luthier School e Coordenador do Núcleo de Estudos da Viola Toeira.
A viola toeira é um instrumento indelevelmente ligado à cidade de Coimbra, e foi o instrumento utilizado pelos estudantes da universidade para as serenatas que evoluiram até serem conhecidas como o Fado ou Canção de Coimbra. A viola foi utilizada até o início do século XX pelos estudantes e até à segunda metade do século XX pelo povo (futricas). Poucos instrumentos sobreviveram, a maioria localizados em museus. A influência do instrumento, entretanto, pode ser sentida no mundo lusófono até os presentes dias. Recentemente, um movimento de recuperação e reutilização da viola toeira desenvolveu-se, com músicos portugueses e de outros países redescobrindo o seu potencial e beleza como um instrumento expressivo. Instrumentos contemporâneos são construídos em ritmo crescente tanto por luthiers profissionais quanto por amadores, atestando a importância da viola toeira no contexto artístico do país.
Gil Vicente, Auto
de Inês Pereira
Sey bem ler
e muyto bem escreuer,
e bom jugador de bola,
e quanto a tanger viola,
logo me ouuireis tanger.
Nova Arte de Viola de Manoel da Paixão Ribeiro a mostrar 12 cordas em 5 ordens
Introdução
A viola toeira, a viola de Coimbra, é um instrumento que ficou praticamente extinto do uso diário no século XX. Ela é uma das violas tradicionais portuguesas que são todas do mesmo tipo fundamental. Essa espécie de viola usava 12 cordas de arame ou tripa organizadas em 5 ordens, um padrão em Coimbra descrito no livro Nova Arte de Viola do Manoel da Paixão Ribeiro, publicado em 1789. Paixão Ribeiro é de Coimbra e refere-se à viola coimbrã do seu tempo, que se terá mantido basicamente inalterável até hoje. Era um instrumento muito importante na vida musical dos estudantes da Universidade de Coimbra até à segunda metade do século XIX, ouvida nas músicas cantadas pela cidade. Entrou em declínio no final desse século, quando foi substituída pela guitarra portuguesa de Coimbra, atualmente usada no Fado de Coimbra, que cresceu dessa música dos estudantes ao ponto de se transformar no que é conhecido hoje, que tem pouco a ver com o Fado de Lisboa.
3. Manuel da Paixão Ribeiro, Nova Arte de Viola (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1789), 7.
Raul Simões e sua viola toeira
Da viola à viola toeira
A viola toeira caracteriza-se pela sua silhueta semelhante à vihuela e viola barroca, boca elíptica predominantemente perpendicular ao sentido das cordas, uma cabeça em forma de lira. Era encimada por um disco solar ou lua cheia às vezes decorado com grafismos gravados na madrepérola. A ponte é muito de acordo com a estética barroca com curvas delicadamente esculpidas em madeira densa. Era armada com ordens de cordas duplas e triplas na afinação mi si sol ré lá, a mesma afinação da viola barroca e viola da terra dos Açores. A viola em Portugal começa a mudar para o instrumento conhecido hoje ainda no final do século XVIII, quando a viola de arame é mencionada pela primeira vez. E a julgar pela Nova Arte de Viola de Manoel da Paixão Ribeiro, na década de 1780, o repertório tanto da viola de tripa quanto da viola de arame era essencialmente o mesmo, embora, segundo Paixão Ribeiro, exigisse do tocador “uma grande modificação nos dedos para sacarem bons vozes,” depois de alguma prática, “a viola se não diferença de hum Cravo.”3
A denominação viola toeira foi recolhida por Octaviano de Sá nas oficinas dos construtores da cidade e publicada numa crónica no jornal O Primeiro de Janeiro e divulgada pelo musicólogo Armando Leça no seu livro Musica Popular Portuguesa e em seguida devido a uma necessidade de diferenciação regional das várias violas tradicionais portuguesas foi generalizada por Ernesto Veiga de Oliveira em Instrumentos Populares Portugueses. Acreditamos na possibilidade ser esta viola que dava o tom para outros instrumentos afinarem quando tocava em conjunto.
A viola toeira usava cordas de tripa e arame, mas não era o único instrumento a usar mais que um tipo de cordas. A viola barroca era armada com cordas de tripa quando tangida dentro de portas e com cordas metálicas quando tocada na rua. Podemos especular que, com o início da Revolução Industrial, ainda com a água como força motriz, começa a chegar à cidade do Porto trazido pelos ingleses um novo tipo de liga metálica que estava a ser desenvolvida para o piano. Esse material que chegava a Portugal em rolo denominava-se em português arame musical. Poderá ser esta a explicação para viola de arame para as violas tradicionais portuguesas. No entanto poderemos afirmar que a toeira seria armada com cordas de tripa e gradualmente, devido à durabilidade e preço das cordas passou a ser definitivamente armada com cordas metálicas. Segundo Paixão Ribeiro, eram utilizadas cordas de latão, cordas de prata e cordas banhadas a ouro.
Segundo o historiador António Nunes, a viola toeira atingiu o seu verdadeiro pico nas décadas de 1850 e 1860, devido ao primoroso fabrico dos Irmãos Bruno e ao virtuosismo de José Dória, no que respeita ao fabrico é importante referir a viola construída por Bento Martins Lobo para a exposição de Coimbra em 1884 e a continuidade dada por António Augusto dos Santos e Raul Simões. A viola toeira dava o som e o caráter da serenata coimbrã, mas com a aparência da guitarra portuguesa, que começara a ser utilizada em Coimbra por volta de 1860; a viola toeira saiu da moda.
A viola toeira e Coimbra
A viola de Coimbra tinha duas denominações distintas: a “Banza” e a “Farrusca,” sendo que o termo Banza descende provavelmente do instrumento africano “Mbanza” levado na memória dos escravos para o Brasil e daí o termo ser utilizado para denominar um instrumento de corda.
Coimbra foi, até às invasões francesas, a universidade do Brasil, os estudantes que vinham estudar na universidade traziam consigo a sua musicalidade, com ritmos, melodias e ambientes harmónicos dos “lundus,” combinando harmonia europeia e ritmos africanos, e a modinha brasileira, baseado na moda portuguesa e sempre acompanhada pela viola. A modinha ficou tão popular que o Jornal de Modinhas foi publicado em Lisboa entre 1792 e 1795. José Ramos Tinhorão confirma que “o costume dos estudantes, tanto de Lisboa quanto em Coimbra, de preencherem as suas horas de lazer com tocatas e cantorias chamadas de estudantinas, levava-os a compor canções.”
Quando um estudante se enamorava era costume convencer alguns dos seus colegas para o acompanhar nas noites mais claras, iluminadas pela lua cheia, pois não existia iluminação publica nas ruas, a cantar à janela da sua amada. Ouvia-se uma serenata deliciosa. Cantando versos como “menina vinde ao luar, vinde ver quem está a cantar,” o instrumento que acompanhava a sua voz era a viola de Coimbra, conhecida agora como viola toeira. Assim nasceu a Serenata, assim nasceu o Fado de Coimbra. Francisco Faria, em Fado de Coimbra ou Serenata Coimbrã?” interroga-se: “Por que chamar a isto fado? Canção coimbrã é uma música de ar livre, a estiolar em ambientes fechados, nos quais perde força expressiva e significado social, para se tornar canção-espectáculo...”
Provavelmente aprenderiam a cantar com familiares e tutores que sorviam a estética parisiense e, no caso da música, a italiana e a austríaca. Por esta razão ouve-se cantar na canção das ruas de Coimbra, a técnica operática do canto lírico que persiste na atualidade e que muito a diferencia do fado de Lisboa. A viola que acompanhava os estudantes era denominada de banza (muito raramente ainda se utiliza hoje expressão como “profissional da banza”). Era semelhante à farrusca a viola dos futricas e tricanas, mas ao nível das decorações era bastante ornamentada e rica segundo a estética barroca, com a utilização de madeiras nobres, madrepérola e marfim.
Viola toeira do Bento Martins Lobo
Quando um estudante se enamorava era costume convencer alguns dos seus colegas para o acompanhar nas noites mais claras, iluminadas pela lua cheia, pois não existia iluminação publica nas ruas, a cantar à janela da sua amada. Ouvia-se uma serenata deliciosa.
Eduardo Loio a tocar uma réplica da viola de Bento Martins Lobo
Provavelmente aprenderiam a cantar com familiares e tutores que sorviam a estética parisiense e no caso da música a Italiana e austríaca. Por esta razão ouve-se cantar na canção das ruas de Coimbra, a técnica operática do canto lírico que persiste na atualidade e que muito a diferencia do fado de Lisboa. A viola que acompanhava os estudantes era denominada de banza (muito raramente ainda se utiliza hoje expressão como “profissional da banza”). Era semelhante à farrusca a viola dos futricas e tricanas, mas ao nível das decorações era bastante ornamentada e rica segundo a estética barroca, com a utilização de madeiras nobres, madrepérola e marfim.
Thomas Garcia a construir uma viola toeira na
Coimbra Luthier School
Revitalização e construção
A viola toeira está a passar por uma revitalização nos últimos anos, com muito interesse nas comunidades académicas e musicais, reconhecendo o potencial de um instrumento com possibilidades expressivas. Com o movimento de early music e o desejo de voltar a usar instrumentos originais na música histórica, vários instrumentos extintos ou esquecidos estão a ser reutilizados em tipos de música antiga e folclórica. A viola toeira cai nesse movimento, e a canção coimbrã.
Em termos acadêmicos, investigadores estão explorando a história e desenvolvimento da viola toeira e música composta para o instrumento, pesquisando a música em arquivos e museus em Portugal e no exterior. Várias teses e dissertações foram escritas recentemente, explorando música disponível como o “Coimbra Codex” em arquivos como a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a Biblioteca Nacional e a Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Outras fontes estão a ser descobertas, e muita informação está disponível na internet. Instrumentos antigos estão a ser estudados também, com exemplares de violas portuguesas de 12 cordas do século XVIII acessível em museus em Portugal e outros países, construídas por António dos Santos Vieyra, de Lisboa, exposta no Ashmolean Museum, em Oxford, Inglaterra, a de Pedro Ferreira de Oliveira (Lisboa, c. 1790), da antiga coleção de Arnold Dolmetsch, actualmente no Horniman Museum, em Londres, outra de José Pereira Coelho (Lisboa, c. 1785) no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa.4
Uma parte dessa revitalização é a construção de instrumentos, principalmente nas últimas décadas. Construtores redescobriram o instrumento e começaram a construir instrumentos baseados nos exemplares históricos, alguns muito elaborados, outros mais simples. Ultimamente, ateliers e fábricas começaram a produzir instrumentos em número significativo.
A construção da viola toeira respeita as técnicas de construção ibéricas que remontam ao século XVI, em que o braço e o cepo ou bloco da quilha são uma peça única, onde as laterais, ilhargas ou costilhas são coladas em duas ranhuras perpendiculares à mediana do braço, previamente serradas. Este método de construção é muito diferente do utilizado em França e Itália, que emigrou para os Estados Unidos onde a caixa acústica é construída separadamente do braço sendo unidos posteriormente através de um encaixe ou malhete.
A cidade de Coimbra é uma parte essencial da revitalização e a construção da viola toeira, com estudantes, músicos e luthiers amadores e profissionais interessados em construir e tocar o instrumento. Há muitos websites dedicados às violas portuguesas e à viola toeira, e é possível comprar instrumentos, estojos e cordas em vários países do mundo. Projetos como EcoMusic na Universidade de Aveiro estão a investigar a história e revivalismo do instrumento e outros aspetos da música portuguesa. A viola toeira tem um passado interessante e variado, e será fascinante ver o que o futuro reserva para esse instrumento.
A cidade de Coimbra é uma parte essencial da revitalização e a construção da viola toeira, com estudantes, músicos e luthiers amadores e profissionais interessados em construir e tocar o instrumento.