1.Professor catedrático de antropologia no ISCTE Instituto Universitário de Lisboa, investigador CRIA-IUL, pesquisas e publicações sobre culturas populares, laicismo, materialidades, museologia; experiência em terrenos europeus, atlânticos, sul-americanos.
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De que se trata, quando se fala do charamba, na Madeira? A resposta exige esclarecimento, visto a designação abranger manifestações expressivas diversas, consoante o espaço e o tempo a que se reportam. Serve de exemplo a entrada no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, que informa: Charamba, s.f. (1873 cf. DV) DNÇ AÇR dança e moda folclórica em que homens e mulheres se movimentam em roda, ger. ao som de viola de arame ETIM orig. obsc.; prov. relacionada com saramba; f.hist. 1873 charambas (ed. portuguesa, vol. II, p.897, Lisboa, Círculo de Leitores, 2002). Retenha-se a origem duvidosa, o cariz popular apontado, a inserção num espaço insular (açoriano) e a atribuição do género feminino. No entanto, no terreno madeirense coloca-se sempre no masculino e não há dança, mas uma exibição declamatória num envolvimento de contenda, de disputa, de despique, de desafio. Na entrada sobre Música tradicional da autoria de Rui Camacho e Jorge Torres2 do site Aprender Madeira sublinha a vertente musical de toada lenta e arrastada, a postura desafiante, com fundamento previamente acordado; deste repente fala-se sempre no masculino, associando-se-lhe a viola de arame. Enquanto neste apanhado os autores colocam o improviso verbal (ou repentismo) como tendo integrado várias manifestações musicais, deixando, por conseguinte, aberta a hipótese, de não ter sido exclusivo do charamba. Atualmente outro modo de improviso difunde-se nos arraiais e outras festividades: o desafio, despique ou desgarrada. A arte verbal espontânea praticada por charambistas está remetida a posição residual.
Considerado não só como popular, genuíno, tradicional e merecedor de salvaguarda, o charamba tem ainda alguns executantes que, em idade avançada tentam transmitir a arte aos mais jovens. Tarefa difícil, pela atração que exerce o despique chegado do norte continental português. Executantes vindos de fora, profissionalizados, contratados pelo poder local para animar arraiais, em que a exibição da disputa verbal é acompanhada e compassada por instrumental eletrónico que mantém atento e participativo um público numeroso, atento e satisfeito. Nos mesmos arraiais acontece também que, a alturas dadas, numa esquina se juntam dois e depois talvez até mais improvisadores (m/f), com acompanhantes à viola, formando-se pequenas aglomerações de gente que anima, incita, aplaude. E os smartphones gravam. É uma disputa com palavras. Nestas ocasiões o vinho lubrifica as gargantas e inspira as mentes.
Considerado não só como popular, genuíno, tradicional e merecedor de salvaguarda, o charamba tem ainda alguns executantes que, em idade avançada tentam transmitir a sua arte aos mais jovens.
Sessão para gravação de charambistas organizada pela Oficina, em março de 1982, na taberna Poço da Morte, em Santana. Da esquerda para a direita (em itálico as alcunhas pelos quais eram de facto conhecidos, todos de localidade referida): Manuel Preciza†, Canenga†, João Marques Gouveia Tenente (1937-), seu filho João Paulo (emigrou para Inglaterra), Castelo†, Joaquim Jorge†. Tratou-se duma ação de recolha musical a propósito da extensão àquela (então ainda) vila do norte madeirense da 1.ª Mostra de Instrumentos Musicais Populares: Recolha, Restauro, Construção. A Oficina funcionava no Funchal, José Ferreira era o coordenador e Carlos Jorge Pereira Rodrigues o violeiro. Foto de António Rodrigues, a quem agradeço a cedência.
Se em algumas situações se ouvem charambistas na sua toada, ela tornou-se rara, respeitada porque coisa dos antigos, apreciada pelo exótico que se lhe atribui. Há sempre alguém que recorda um pai, um avô, um familiar, um vizinho, um conhecido, charambista famoso no seu tempo. Daí entidades associativas culturais, o poder local e outras instâncias ligadas às políticas públicas de cultura, considerarem este repentismo como em risco de extinção. Convocam-se os que ainda o dominam, organizam-se eventos, pondera-se instituir o ensino formal, procuram-se situações de ditas boas práticas com vista à sua divulgação nas camadas jovens.
Na Madeira, o repentismo atual é manifestação expressiva implantada nas camadas sociais que se assumem como subalternas e distinguem-se duas práticas: o desafio (despique, desgarrada) trazido no início do século por executantes que o difundem desde o norte continental, em progressão e o charamba, a expressão declarada nativa, em regressão.
Aceite o facto, torna-se pertinente indagar a transformação no repentismo praticado. Que processos lhe estarão subjacentes? Esta uma das tarefas que nos propusemos levar a cabo no âmbito do projeto EcoMusic. O que a seguir formulo é uma hipótese e reflete o estado da pesquisa no terreno, interrompida pelo confinamento sanitário. Os charambistas mais idosos que ainda têm atuado relatam dados convergentes. Até finais dos anos 1970 era prática usual tanto em arraiais, como em performances que ocorriam em moldes espontâneos a nível local, envolvendo familiares, vizinhos e conhecidos. Havia os improvisadores mais famosos que não deixavam as suas credenciais por conta alheia e ao desafiarem outro, surgia de imediato alguém para o acompanhamento à viola. A emigração – tendo naquele período sido a Venezuela, e já não tanto o Brasil, o destino mais procurado – levou ao desaparecimento dos repentistas e à desmotivação dos que ficavam ou ainda não haviam embarcado. Fugiam à miséria rural e, chegados ao destino, eles saídos camponeses, viam-se mergulhados num contexto urbano desconhecido. Embora nas sociedades de acolhimento estivessem também enraizadas expressões do improviso oral nas culturas populares (venezuelanas, brasileiras...), eles emigrantes, geravam a sua cultura migrante, focada na língua e em recordações da terra – onde haviam deixado parte da família. Alguns mais dotados e motivados passaram a dar vazão ao seu versejar já não pela prática repentista, mas no verso escrito e difundido em convívios com os conterrâneos e posteriormente publicados na imprensa emigrante. Duma oralidade predominante esta geração passa a exprimir-se, produzindo identidade, pela via da escrita. Esmoreciam as vozes do repente, reproduzia-se na oralidade o que já estava fixado em texto. Acabara o primado da palavra dita, a favor da que era e ficava escrita. Primeiro o disco de 45 rpm depois a cassete foram os suportes de difusão. Já não era fundamental memorizar a efemeridade de ditos, respondidos e atalhados. Ouviam-se agora canções, por regra, com acompanhamento à viola. Fixavam-se e normalizavam-se lembranças da terra natal. Na diáspora, o charambista adaptava-se às novas circunstâncias.
A realidade migratória pode, em consequência, explicar o desuso do charamba e a quase sua extinção. Processos idênticos terão ocorrido com outras expressões musicais no passado, hoje difíceis de reconstituir.
É compreensível que quando conversamos com os charambistas sobre a sua arte verbal, quase tudo se reporte ao passado. Ao recompor memórias o pensamento está no presente; quer dizer, na comparação com a performance repentista praticada pelos mais novos. O despique é mal visto. O enquadramento do espetáculo nada tem de comum com o charamba praticado outrora; mas a principal crítica que leva à rejeição liminar é a linguagem utilizada. Os charambistas expressavam-se de forma “educada”, mantendo as regras de cortesia. Serviam de fundamento assuntos da moral pública e a crítica aos que a ela não se submetiam; orientava o discurso a aceitação da ordem social e a sua defesa assente no conformismo, enquanto “os de agora” usam e abusam de uma linguagem imoderada, “sem manifestar qualquer respeito”. Incomoda-os o desacato aos bons costumes, rejeitam esta arte verbal assente na metaforização sexualizada. Justificam-se os últimos com a necessidade de agradar ao público. Ao que seja talvez de concluir, que nesta característica se revela a alteração da posição e do estatuto da mulher na sociedade. Elas assistem e participam da mesma forma que eles a algo que se poderá equiparar aos discursos ocultos referidos por James C. Scott. Não será resistência, mais uma denúncia, uma aspiração ou mesmo pura exigência de relações de género pautadas por assimetrias esbatidas.
É compreensível que quando conversamos com os charambistas sobre a sua arte verbal, quase tudo se reporte ao passado. Ao recompor memórias o pensamento está no presente.
Santa Cruz, junho de 2019: atuação de charambistas durante o Encontro de Repentistas, integrado nas festas concelhias Santa Faz, organizado pelo município. Da esquerda para a direita: Mário Jorge Viveiros Vieira, Eleutério Martins Gonçalves Nóbrega, João Marques Gouveia Tenente, Leonardo Silva Correia (viola de arame). Foto: Roberto Moriz.
Na sua pesquisa realizada na Galiza rural, em meados da década de 1960, Carmelo Lisón Tolosana (1929-2020) via e descrevia aquela arte verbal (regueifa) como consistindo numa estética da agressão ou numa agressão estética.3 Na situação madeirense este elemento será válido; contudo, agora é o fator digital que deverá ser tido em conta e enquadrado. Independentemente do estilo da performance (charamba ou desafio minhoto), ambos estão sujeitos ao registo audiovisual espontâneo feito pela assistência, ao que se segue a difusão pelas redes sociais. São aspetos novos que ampliam sem limites o alcance das exibições. Público deixou de significar presencial e o ato de assistir em modo remoto e repetível atua e promove, por sua vez, o presencial; gera-se retroalimentação. A voz ouvida, vista, repetida, reproduzida, é uma desmaterialização, porque anula e suprime a textualização.
Sem pretensão conclusiva definitiva assumida, remato com algumas considerações.
Primeiro, a determinação do lugar do improviso oral (charamba, cantar ao desafio) na Madeira. Estas formas de disputas rituais devem ser sujeitas a análise comparada com outras paisagens sonora.4 Isto permitirá identificar os parâmetros ecológicos que regem estes processos musicais.
Às práticas repentistas associam-se períodos de ascensão e sucedem-se outros de declínio; são manifestações sociais que operacionalizam oralidades.
Segundo, a sustentabilidade dos repentismos madeirenses discutidos: os agentes diretos e outros intervenientes, a dinâmica gerada, a mensagem emitida e transmitida face à ordem social vigente. Às práticas repentistas associam-se períodos de ascensão e sucedem-se outros de declínio; são manifestações sociais que operacionalizam oralidades. Nesta alínea, ganha relevo atender às atuais circunstâncias pandémicas (CoViD19), no sentido de equacionar a noção de normalidade na vida social.
Terceiro, o pós-folclorismo. A circunstância repentista madeirense vivida no presente reflete e anuncia a entrada em cena duma outra componente. No caso em apreço, os movimentos sociais consolidados, como o folclórico por um lado (fixação do gesto, palavra, música, nostalgização) e o da música tradicional (recolha crítica, recriação, fusão musical, intelectualização), por outro, são chamados a confluir em prol da constituição de regimes patrimoniais certificados – também designados Heritage regimes5. Entram em cena as políticas públicas de cultura em que interagem UNESCO, estado nacional, autonomia regional e sociedade civil; e que se reconfiguram géneros performativos como o improviso verbal na forma de drama social de teor conformista, de resistência ou emancipatório.
3.C. Lisón Tolosana publicou em 1974 uma das primeiras análises antropológicas a este assunto e que permanece das mais inspiradoras. Reporto-me a “Arte verbal y estructura social en Galicia” in: Perfiles simbólico-morales de la cultura gallega, Madrid, Akal bolsillo, 1981, p. 26-60, cito aqui p. 54.
4. Refiram-se p. ex. Manca, Maria La poésie pour répondre au hasard 2009, Nistal Andrés, Marta La voz viva 2009, Armistead, S. G. e J. Zulaika, eds., Voicing the Moment 2005, Hedayati-Aliabadi, M. Slam Poetry 2018, Amorim, Maria Alice Pelejas em rede. Vamos ver quem pode mais, 2012 /recurso eletrónico/ , Gomes, Germana G., Insultos, Elogios e Resistências. Participação de repentistas negros em cantorias do Nordeste, 1870-1930, 2012 /recurso eletrónico/ Souza, Laércio Queiroz de, Mulheres no repente. Vozes femininas no repente nordestino, 2003 /recurso eletrónico/, Campo Tejedor, Alberto, Trovadores de repente. Una etnografía en los improvisadores de La Alpujarra, 2006.
5. Sobre esta noção e o contexto da sua elaboração ver os volumes da série Göttinger Studies in Cultural Property, em especial R. Bendix, A. Eggert e A. Peselmann, eds., Heritage Regimes and the State, 2013 /recurso eletrónico/, OpenEdition Books, 2017.