0%

LEITURA 8’ 01’’

“Confinad@s em casa”:
sobre dança,
música e incerteza

Ema Pires 1
Mercedes Prieto 2
Celina da Piedade 3
1.Antropóloga e Professora Auxiliar no Departamento de Sociologia/Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora. Investigadora integrada no Instituto de História Contemporânea (IHC-UÉ).

2.Nascida na Galiza ao pé do rio Minho que une esta terra com Portugal. Formou-se em Dança na FMH de Lisboa. Desenvolve o seu trabalho como artista, professora e investigadora na área da dança tradicional e educativa.

3.Música e compositora. Formadora e consultora em assuntos de Património Imaterial. Investigadora-júnior no Instituto de Etnomusicologia – música e dança, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. (INET-md/ FCSH-UNL). Investigadora no Projecto ECOMUSIC (INET-md, FCT).
A pandemia de Covid-19 e o confinamento daí decorrente inaugurou um tempo de incertezas múltiplas para a população em geral, e para os artistas, em particular. Neste artigo, discutimos aspectos de encruzilhadas de experiência participante por nós desenvolvida em contextos de aulas remotas de danças tradicionais, que tiveram lugar entre Abril e Junho de 2020, leccionadas pelas artistas Mercedes Prieto e Celina da Piedade, confinadas nas suas respectivas casas, na Galiza e em Portugal. Partindo da experiência participante entre a turma destas aulas virtuais, argumentamos que, na aprendizagem de repertórios de dança e MTP (entre outros) se marca uma ruptura provisória face à incerteza do quotidiano. Palavras-chave: Música; Dança; Incerteza; Precaridade; Quotidiano “Confinad@s em casa”
A prática das danças tradicionais insere-se num novo movimento folk iniciado em Portugal com a criação do Festival Andanças em 1996. Segundo Maria do Rosário Pestana, este modelo de revivalismo musical distingue-se dos anteriores porque o que é procurado já não é a autenticidade, a “música do povo”, mas sim uma relação dinâmica entre o passado e o presente, ligada a um modo de vida sustentável, sem nostalgia sobre um tempo mítico. Os repertórios resgatados a um tempo tido como antigo são só o ponto de partida, a matéria-prima para uma prática cultivada para o presente, para o reforço dos laços inter-humanos, da participação colectiva (Pestana 2009). Estas danças “tradicionais” são de aprendizagem simples, de carácter inclusivo, dando resposta à necessidade contemporânea de integração em práticas de carácter comunitário. Como também nos faz ver Tamara Livingston, estas práticas oferecem experiências que vão além das questões revivalistas: facilitam a interacção social, promovem a sensação de pertença a um grupo, satisfazem os anseios de criatividade pessoal e basicamente, oferecem entretenimento (Livingston 2015). O seu carácter tantas vezes participativo, baseado na comunicação não verbal (música, dança e outros), faz dos sentidos e emoções o principal veículo. Estas danças “tradicionais” são de aprendizagem simples, de carácter inclusivo, dando resposta à necessidade contemporânea de integração em práticas de carácter comunitário.
A construção deste texto é alicerçada em análise documental e observação-experiência participante. Os principais recursos documentais analisados foram: os registos das observações participantes realizadas, durante as aulas, através do ecrã da plataforma digital; o histórico das discussões síncronas realizadas pelos participantes no chat/bate papo da mesma plataforma;4 e por fim, em modo diferido, o conjunto de sumários detalhados que Mercedes Prieto enviava à turma, por e-mail, depois de cada aula, e que titulam a presente secção. O espaço-tempo das aulas decorria às quartas-feiras ao final da tarde (no fuso horário GMT+1) nos meses de Abril a Junho de 2020. As sessões titularam-se Aulas de Danças Tradicionais com Celina e Mercedes. As professoras orquestraram de modo polivalente, no ecrã da aula, os seus vários papéis sociais: dançarinas, músicas, cantoras, pedagogas, para além de desenvolverem outros papéis sociais (que ficam de fora da presente análise, mas que foram visíveis por vezes no ecrã, como a sua condição humana de mães/companheiras/amigas). Adicionalmente, no presente, assim como no passado, fora do ecrã, ambas têm também sido investigadoras em Centros de Investigação avaliados pela FCT, ou ainda docentes em Instituições de Ensino Superior (Mercedes Prieto). As aulas com Mercedes e Celina operaram-se a partir de divulgação prévia nas páginas das redes sociais das artistas (Mercedes e Celina), seguida de inscrição e pagamento por transferência bancária (nas modalidades de “avulsa” ou “mensal”). Acorreu um número variável de pessoas, muitas delas que no passado tinham já frequentado oficinas presenciais com as artistas. Estes estudantes falavam maioritariamente o português e/ou castelhano e estavam localizados em Portugal e Espanha, mas também em países da América do Sul. As línguas de contacto foram, por isso, o português, o galego e o castelhano, e as docentes foram também por vezes tradutoras simultâneas destas línguas. Ao som do acordeão e voz da Celina da Piedade, e ainda de outros instrumentos tocados por músicos presentes nas casas das professoras-artistas, as aulas decorreram num ritmo cadenciado de aquecimento inicial (do corpo e da voz), de audição-visualização, repetição faseada, experimentação, e relaxamento final. A aprendizagem de danças configurou uma espécie de viagem em redor do Mundo: as coreografias e repertórios eram acompanhadas ao acordeão e cantadas em diversas línguas: português, crioulo (de Cabo Verde), galego, basco, hebraico, entre outras.
4.Foi usada a plataforma colibri-zoom, a qual também permitiu a gravação das aulas para posterior envio aos estudantes.


Aula online de danças tradicionais. Mercedes Prieto demonstra a dança, Celina da Piedade (acordeão e voz) e a sua companheira Ana Santos (violino) tocam, Celine Hameury participa a partir da sua autocaravana em França, Ema Pires faz a aula no quintal. Os restantes alunos escolheram naquele momento ter a câmara desligada.
“Quantos queres?”, objecto utilizado pela professora Mercedes Prieto para trazer à aula de dança a intervenção de todos os alunos na escolha do repertório aprendido.
©Mercedes Prieto
Na didáctica das aulas foi incluído o uso de um objecto (cf. fig 2) pela professora de dança para incitar à participação em aula, apesar da solidão do ecrã, e implicar os estudantes no processo de co-produzir aprendizagem. De igual modo, os estudantes, de modo faseado, faziam a escolha de uma dança da sua preferência para ser incluída no plano de aprendizagem das aulas seguintes. Implicados na aprendizagem de danças e músicas da sua preferência, articulados com as gestualidades próprias de cada um@, as aulas decorreram em fluxo contínuo e nelas aprendemos a dançar e cantar modas de Portugal e da Galiza (ex. Saias do Alentejo, ou o Pézinho, em versões portuguesa e galega), do País Basco, Israel, ou França, entre outros. As professoras partilhavam no ecrã não apenas os seus recursos artísticos, tempo e espaços privados, mas também desvendavam, nesse cenário de fundo do seu ecrã, um pouco das suas vidas pessoais/familiares. No final de cada sessão, Mercedes enviava à turma, por e-mail, um sumário detalhado da sessão realizada, incluindo ainda recursos digitais adicionais, que permitiam consolidar, expandir ou aprofundar o que foi ensinado. Igualmente, o envio da gravação da aula feita no zoom seguia para os estudantes: como forma de lembrar alguma dança, cantiga ou música, mas especialmente para aqueles alunos que não puderam estar presentes na hora marcada e que gostariam de fazer a aula mais tarde ou noutro dia. Este é um dos benefícios das tecnologias, que nos dão a oportunidade de aprender com os vídeos gravados (porém, perdemos o convívio em directo da “comunidade virtual” dos participantes nas sessões). A adesão a estas aulas foi crescendo gradualmente entre Abril e o final de Junho de 2020, altura em que terminaram as sessões. Resistir ao confinamento a dançar seria então substituído por um regresso gradual dos participantes aos seus mundos sociais particulares, fora do ecrã.
As professoras partilhavam no ecrã não apenas os seus recursos artísticos, tempo e espaços privados, mas também desvendavam, nesse cenário de fundo do seu ecrã, um pouco das suas vidas pessoais/familiares.
Para além do ecrã – Da incerteza e suas encruzilhadas Pesquisas recentes em contextos de políticas de austeridade na Europa do Sul (Lorey, 2015; Papataxiarchis, 2016, Stweart, 2012; Knight e Stewart, 2016) têm demonstrado a vitalidade dos mecanismos de solidariedade grupais na resistência a situações de incerteza e precaridade. No contexto empírico em análise, a instabilidade de acesso à internet, ou a regularidade intermitente de alguns participantes durante as aulas, não impediu a construção de uma ‘comunidade’ virtual de aprendizes de dança, que se reuniram no centro do ecrã da plataforma digital para acompanhar as melodias e coreografias dinamizadas em directo pelas artistas-professoras. Visualizar o ecrã e ser-se convidad@ a ‘entrar’ nas salas das professoras de dança e de canto/acordeão, passou a ser uma rotina semanal, (inter)rompendo a temporalidade do dia-a-dia para uma evasão momentânea da vida quotidiana. O tempo-espaço da aula assumiu-se como um tempo simultaneamente de lazer e de aprendizagem-trabalho. A performance e participação nestas aulas de danças tradicionais são o que as tornam socialmente significativas: o foco está acima de tudo na acção musical e interação social, e menos no contexto teórico dos conteúdos trabalhados (Turino, 2008). As opções seguidas pelas professoras-artistas, apelando à participação, cimentaram a construção de uma ‘comunidade imaginada’ (Anderson, 1983) de dançarinos e músicos. E por via da solidariedade intra-grupal gerada durante as aulas, talvez também, metaforicamente, esta comunidade de aprendizes e de artistas possa ter-se mostrado um escudo simbólico de resistência contra a incerteza.
Mercedes Prieto demonstra uma Dança de Paus com a ajuda do companheiro Sergio Cobos e dos dois filhos.
Celina da Piedade a tocar na aula online; Mercedes Prieto e o seu companheiro, Sérgio Cobos, demonstram a dança.
© Ana Santos
Conversa no final de uma aula.
Anderson, Benedict. 1983. Imagined Communities. London: Verso.

Knight, D. and C. Stewart (2016) ‘Ethnographies of austerity: Temporality crisis and affect in Southern Europe’, History and Anthropology, 27 (1): 1–18.

Livingston, Tamara. 2015. “An Expanded Theory For Revivals as Cosmopolitan Participatory Music Making”. The Oxford Handbook of Music Revival, Caroline Bithell e Junniper Hill (eds), 60-69. New York: Oxford University Press.

Lorey, I. (2015) State of Insecurity: Government of the Precarious, London: Verso.
Papataxiarchis, E. (2016) ‘Unwrapping solidarity? Society reborn in austerity’, Social Anthropology, 24 (2): 205–10.

Pestana, Maria do Rosário. 2009. “Voltar a Casa e tocar de Ouvido: música, ecologia e a ordem incerta do mundo”. Performa’09- Encontros de Investigação em Performance. Aveiro: Universidade de Aveiro.

Stewart, Kathleen. 2012. ‘Precarity’s forms’, Cultural Anthropology. 27 (3): 518–25.;

Turino, Thomas. 2008. Music as Social Life: The Politics of Participation. Chicago: University of Chicago Press.