1.Universidade de Aveiro, Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança. O autor beneficia de suporte financeiro através de uma bolsa de doutoramento FCT (SFRH/BD/139998/2018).
2.Estudante de Contabilidade e Gestão para PME's na Escola Superior de Ciências Empresariais – Instituto Politécnico de Viana do Castelo. Integra o Grupo de Bombos “Os Figueiras na Rua”.
Em 18 de março de 2020 Portugal decretou o estado de emergência no âmbito das medidas contra a Covid-19. Desde então, as necessárias restrições de segurança impostas pelo governo têm gerado profundos constrangimentos no ecossistema dos bombos. Repentinamente, os músicos foram impedidos de se contactarem fisicamente e os espaços tradicionais de performance foram silenciados. O levantamento prospetivo feito com 31 agrupamentos entre os meses de maio e junho elucidou em nome e número este impacto: em resposta a questionário, foram indicados o cancelamento ou o adiamento de atuações em mais de 70 festividades previstas para 2020 – desde as grandes romarias do Minho, como a Festa da Nossa Senhora da Agonia, até ao São João de Braga e demais festividades em freguesias do país; desde festivais etnográficos até feiras medievais; desde eventos particulares como os casamentos até encontros de bombos, de gigantones e de cabeçudos.
Se, por um lado, a grande maioria dos agrupamentos se encontra, ainda, numa frágil inércia perante a impossibilidade de atuar em contextos face a face, por outro alguns têm recorrido a modalidades e ferramentas digitais não integradas em seus modos habituais de performance. Nestas circunstâncias, o vibrante espaço performativo a céu aberto da rua foi substituído pela partilha do ecrã e a experiência relacional dos músicos foi mediada por novos e sofisticados agentes. Semelhantemente, as implicações da pandemia condicionaram também a própria práxis dos investigadores. Não só porque o distanciamento social impeliu necessariamente uma relação à distância com os seus interlocutores, mas porque, abruptamente, desafiou estruturas e procedimentos metodológicos mais tradicionais na produção de conhecimento sobre o fazer musical.
Nesse contexto, tanto para uns como para outros, o terreno virtual configurou-se como um lugar de possibilidade, como um complexo espaço de produção de sentido marcado por novos processos musicais de performance, de mediatização, de trânsito de músicas e de interações sociais. Virtualmente, este processo desencadeou, inclusive, numa aproximação a novos interlocutores cuja colaboração na tarefa investigativa mostrou-se absolutamente generosa e interessada. Este texto, por exemplo, resulta de uma experiência colaborativa: foi escrito em coautoria com o tocador de caixa Carlos Daniel Cerqueira, do Grupo de Bombos “Os Figueiras na Rua”, de Paredes de Coura. Consiste numa tentativa de compreender um pouco mais sobre as dinâmicas de preparação e de performance, sobre as relacionalidades e o papel das redes e ferramentas digitais nas atividades dos tocadores e na sustentabilidade dos coletivos de bombos num cenário pandêmico.
As observações no grupo Bombos de Portugal, do Facebook, e o encontro com “Os Figueiras na Rua”
Em meados de março, eu, Lucas, comecei a participar em grupos de discussão e partilha sobre os bombos no Facebook. Criado em 2016 no âmbito da candidatura à matriz do PCI e atualmente com cerca de 650 membros, o grupo Bombos de Portugal consistiu num terreno determinante a nível de produções e interações entre tocadores e entusiastas da prática. O acompanhamento das ações nesta plataforma revelou a regular partilha de memórias em texto, foto, áudio e vídeo de convívios, encontros e atuações pré pandemia, a circulação de material didático intra e entre grupos, atuações individuais transmitidas “em direto” para uma audiência que interagia em simultâneo e a publicação de um conteúdo digital que, astutamente, punha em performance simultânea tocadores separados fisicamente no tempo e no espaço. Refiro-me, aqui, mais especificamente, aos vídeos musicais do grupo de bombos “Os Figueiras na Rua”. Idealizados e produzidos por Carlos Daniel Cerqueira, já no dia 2 de abril a partilha de Carlos trazia ao ecrã indivíduos de faixa etária variada percutindo um conjunto de instrumentos não convencionais. Portando headphones, em trajes informais e posicionados lado a lado – alguns ao ar livre, outros em ambientes internos domésticos, 14 tocadores soavam em conjunto acompanhando a melodia de Laurindinha enunciada pela concertina. Dez dias depois, desta vez com a participação de 16 membros, o grupo encenava outra atuação conjunta. Os textos #ficaemcasa e “Vai ficar tudo bem” continuavam a acompanhar o conteúdo das inusitadas performances pelo ecrã.
Reinventar, interagir e tocar num estilo e formato diferenciados:
as performances em vídeo
Eu, Carlos, tive a ideia de criar estes vídeos porque como o grupo estava há quase um mês parado, senti que havia necessidade de reinventar algo para que pudéssemos, mesmo a partir das nossas casas, continuar a interagir uns com os outros. Na altura, assisti a um vídeo no Facebook no qual um grupo folclórico do Brasil dançava a partir de casa. Logo, imaginei: “E por que não fazer isto com os bombos?!”. Comecei, então, por pedir ao Leandro, um dos nossos tocadores de concertina, que produzisse um vídeo a tocar a Laurindinha. Acompanhado pela sua irmã a tocar “caixa”, enviou-me o ficheiro pelo Facebook ao qual eu adicionei o toque de um “bombo”. Este consistiu justamente no modelo que partilhei com os demais membros de modo que pudessem ver e ouvir aquilo que era suposto elaborarmos. Embora bem-recebida, notei que, pelo facto de estarmos a fazer algo fora da caixa, o envio deste material criou um certo receio e nervosismo para alguns integrantes. Porém, sentíamos que deveríamos fazer algo diferente e queríamos, também, de certa forma sensibilizar as pessoas a ficarem em casa. Na altura, escolhemos instrumentos não convencionais porque todos os nossos bombos e caixas estavam armazenados na nossa sede. Portanto, recorrendo à imaginação e à criatividade, cada um pôde escolher o seu. De modo a imitar os instrumentos reais, foram utilizados baldes, bidões, bacias, latas de bolachas, cadeiras e até mesmo biberões de bebé. E em menos de uma semana eles enviaram-me tudo. Tive que recorrer, então, ao YouTube para aprender a editar todo este material. Através do conteúdo lá disponibilizado, aprendi a fazer o tratamento necessário, como por exemplo: juntar vários vídeos num mesmo ficheiro, aumentar o volume e diminuir o tamanho das imagens. Com o software Filmora 9, demorei três dias para finalizar o vídeo. Consoante fazia o trabalho de edição, revelava ao grupo o ponto de situação para que me dessem um feedback. A cada dia as respostas que obtinha eram mais positivas e mais emocionadas, uma vez que os membros perceberam que, apesar de tudo aquilo que estava a acontecer, estávamos a construir um trabalho que demonstraria que ainda estávamos aqui.
Uma semana mais tarde, sugeri-lhes a realização de mais um vídeo. Seguindo os mesmos procedimentos, decidi, desta vez, arriscar na preparação de uma música nunca antes executada por nós: "Oh linda, tu já namoras!". Aqui, tive que criar os toques do bombo e da caixa antes de gravá-los e enviá-los como modelo ao grupo. Nesta situação, pude constatar a importância dos nossos ensaios presenciais: se estivéssemos todos reunidos, provavelmente alguém se iria manifestar dizendo que “nesta parte da música poderíamos fazer assim… ou assim!”. A participação dos integrantes nas criações digitais é, mesmo, mais discreta. Mas o facto é que ambos os vídeos tiveram bastante êxito: contabilizam, juntos, mais de 33 500 visualizações no Facebook. Para além da circulação nesta rede social, a própria imprensa local fez referência às nossas produções. A Rádio Vale do Minho, por exemplo, anunciou em matéria específica que “Grupo de Bombos festeja a Páscoa com mais um tema tocado a partir de casa”. E a Altominho TV também partilhou o nosso vídeo. Sabemos que, com este trabalho, fizemos a diferença na vida de muitas pessoas. As pessoas estavam em casa sem poder sair e, nestes dias, conseguimos proporcionar-lhes dois minutos de alegria num estilo e formato de tocar diferenciados.
“E se fizéssemos um vídeo juntos?”: o som dos bombos numa performance conjunta
Desde a veiculação das referidas performances d“Os Figueiras na Rua”, mantivemo-nos em continuada comunicação virtual. Este contacto refletiu-se, inclusive, na disponibilidade do grupo em colaborar na elaboração de uma comunicação apresentada em julho deste ano na mesa redonda EcoMusic: sustentabilidade da MTP em contexto Covid-19. Naquela situação, algumas das experiências vividas pelos integrantes durante a quarentena foram plasmadas em texto e então partilhadas com uma audiência composta fundamentalmente por colegas investigadores.
No âmbito da discussão sobre os procedimentos e os conteúdos a serem integrados no presente documento, Carlos e eu pensamos como seria importante, desta vez, incluir neste registo escrito colaborativo o próprio som do conjunto de bombos. “E se fizéssemos um vídeo juntos?!”, foi a pergunta que precedeu o início de todo um novo processo de preparação para a performance. A resposta substancializou-se em ação imediata: favorecidos pela tecnologia em sua pronta disposição à conectividade, rapidamente escrevemos aos membros de “Os Figueiras da Rua” anunciando a proposta. Carlos conduziu toda a dinâmica, tal e qual explicou anteriormente. Eu, Lucas, integrado nas redes privadas que o grupo mantém no Facebook e Whatsapp, observei, interagi e reagi animadamente a cada chegada de novo vídeo anunciado pelo ecrã do meu telemóvel. Ouvindo e vendo cada tocador em suas performances individualizadas, também aprendi, gravei e enviei a minha colaboração na “caixa”.
Se é verdade que a pandemia acentuou desigualdades e violentamente ostracizou coletivos e agentes culturais, não podemos esquecer que também impeliu os indivíduos para a ação. Nesse sentido, juntamente das palavras aqui dispostas, esta criação colaborativa substancializa em som e imagem os bombos em tempos de Covid-19. Ao aceder ao link disponibilizado abaixo, o leitor vê e ouve aquela que consiste precisamente numa das dinâmicas de resiliência levadas a cabo pelos próprios atores do terreno. Ressoando a força do coletivo sob a premissa do “faça você mesmo”, projeta e perpetua um gesto criativo na sustentabilidade da prática perante um cenário cujas tensões continuam a exprimir a incerteza do amanhã. Digitalmente, conforme enfatizou Carlos, reitera que os bombos, de facto, ainda estão aqui. O resultado é, seguramente, alentador: embora fisicamente à distância, no ecrã estamos todos, lado a lado, tomando partido numa compenetrada performance musical.