Os artigos publicados nesta revista dão a conhecer processos musicais e de investigação em curso no projeto Ecomusic – Práticas sustentáveis: Um estudo sobre pós-folclorismo em Portugal no século XXI. Este projeto pretende abordar e analisar a diversidade de atos musicais rotulados de populares e as dinâmicas que se geram para a sua reprodução sustentada.
Com esse propósito reuniu-se uma equipa que congrega mais de uma dezena de etnomusicólogos/as e antropólogas/os, de diferentes universidades e centros de investigação, acolhendo
deste modo um leque abrangente de abordagens, sensibilidades e experiências adquiridas.
Sensivelmente a meio do percurso do projeto, impunha-se proceder a um balanço do andamento das pesquisas, em termos que permitam uma divulgação e apreciação além do contexto académico. O desafio proposto pela direção da revista Veduta foi a janela que se nos entreabriu para concretizar esse propósito. Daí resultou o dossiê que se apresenta. A maior parte dos textos é escrita em co-autoria, numa etnografia recíproca tecida no entrelaçar das perceções do investigador e do(s) seu(s) interlocutores no terreno, tal como argumentam Elaine Lawless ou Susana Sardo. De entreaberta essa janela abriu-se de par em par. Para além do propósito inicial desejado e previsto – a diversidade dos contextos em análise e as experiências de terreno que se lhes articulam -, a situação pandémica declarada por causa da Covid-19 criou um desafio inesperado, em que a indeterminação se instaurou como o fator preponderante nas nossas vidas.
Nos artigos reportam-se consequências dum quotidiano moldado pelo inesperado e pela insegurança; investigadores e investigadoras vacilam entre a interrupções impostas e a reconfiguração necessária e desafiante dos seus trabalhos.
Os artigos referem-se a um terreno abruptamente instabilizado. Músicos, cantadores e cantadeiras, enfrentam o silenciamento dos espaços performativos e a impossibilidade de inter-agir uns com os outros, de fazer reverberar entre si a experiência e conhecimento de cada um. O auditório virtual é o mundo possível? Alguns, poucos, geram a cena performativa em espaços e contextos virtuais. – Aí, os músicos substituem o contágio de gestos gerado na partilha coletiva de um mesmo tempo e espaço, pelo tocar ou cantar individualizado e assíncrono possibilitado pelas tecnologias de gravação, edição e reprodução de som e imagem. Outras transformações são igualmente significativas: as texturas densas da performance face-a-face tendem a ser substituídas por texturas diferenciadas pelos filtros dos dispositivos tecnológicos; a distensão provocada por um certo assincronismo na entrada dos performers é “corrigida” pela audição da guia com melodia e metrónomo; os atos intangíveis e reiterados do fazer música coletivamente – a ação conjunta, participada e relacional – são substituídos por reproduções cristalizadas de uma mesma performance; a performance perde a favor do arquivo, da coleção de registos oferecida pelas plataformas em linha. Paradoxalmente, se o acesso é livre, aberto idealmente a todos, a vivência do espaço performativo virtual é individualizada.
Emergem ou consolidam-se novos papéis na performance. Os instrumentistas das tecnologias de gravação, edição e reprodução de som e imagem são tão centrais quanto os tocadores e cantadores. Observa-se que a maior parte dos coletivos carece de tais “performers”. A aceleração das transformações ocorridas não permite aos músicos mais velhos, ou menos letrados e menos urbanos apropriarem-se dessas mediações.
Do lado da investigação em curso no projeto Ecomusic, a experiência imersiva do trabalho de campo foi, em grande parte, substituída pela mediação do computador ou do telemóvel (conversas a distância, partilha de registos no Facebook, YouTube, etc.). Este modo relacional impõe uma perspetiva única, indiferente aos diversos lugares dos sujeitos: o ecrã abre-se ao terreno em estudo como uma boca de cena diante da secretária do investigador.1 Para não ficar refém dessa condição de observador, torna-se imperativo explorar outros modos de produção de conhecimento. A escrita cooperativa foi uma das estratégias pensadas, mediando espaços de interlocução entre investigadores e, por sua vez, destes com os seus interlocutores no terreno. Alguns dos textos publicados neste dossiê ensaiam modos de cooperação e coautoria.
Em jeito conclusivo retenham-se os seguintes aspetos a considerar como mais relevantes:
a) a reconversão ecológica das paisagens sonoras;
b) os dilemas com que se deparam as performances em espaço público;
c) a resiliência registada na adaptação de experiências face-to-face a suportes ecrã-a-ecrã.