1.Investigação financiada pela FCT, no âmbito do plano estratégico do CRIA, Centro em Rede de Investigação em Antropologia (UIDB/ANT/04038/2020)
De repente, as festas desapareceram. Todas. E, com elas, também desapareceram muitos dos momentos em que a música, nas suas formas populares ou mais ou menos eruditas, se costumava manifestar. Afinal, ao contrário do que se diz, festa não é bem quando o povo quiser.
E festival também não. Polimorfo como a festa, tão complicado de definir como ela, o festival ocupa uma posição mais incerta e algo flutuante entre funções de criação e reforço do elo social através do sentimento de envolvimento numa “efervescência colectiva”, como dizia o sociólogo Émile Durkheim há mais de um século, e uma visão mais psicológica que salienta sobretudo a suspensão ou inversão temporária e subsequente reafirmação da ordem estabelecida. As dimensões eventualmente carnavalescas do festival podem ter uma intensidade e contornos algo diferentes dos da festa, em particular nesses tempos de intensa comercialização de iniciativas culturais. Mas é verdade que este tipo de evento pode ele também, até um certo ponto, ser um “tempo fora do tempo”, para usar uma expressão que se tornou comum para descrever a festa desde que o Alessando Falassi (1987) a usou como título de um livro que lhe consagrou. Um tempo fora do tempo, com um determinado espaço que lhe é atribuído, com regras para se poder entrar, com certos comportamentos tolerados no recinto que não o seriam no exterior, portanto uma certa marginalidade antes de uma reafirmação da normalidade.
Afinal, ao contrário do que se diz,
festa não é bem quando o povo quiser.
Várias diferenças, todavia, distinguem festa e festival. A primeira diz sobretudo respeito a um conjunto social mais restrito ou pelo menos delimitado, em geral ancorado de uma maneira ou de outra num certo território. A imensa maioria dos eventos considerados como festas têm uma escala muito mais reduzida. E se a romaria da Sra. D’Agonia, em Viana do Castelo, pode reivindicar a participação de um milhão de pessoas, numa inflação vertiginosa em que tem competido nos últimos anos com algumas outras festividades, os seus participantes – além dos forasteiros de passagem que se limitam a ser observadores — partilham um conjunto de referências culturais (nem todas religiosas) e regionais. De todas as actividades colectivas humanas (a festa não pode ser solitária), esta, nas suas inúmeras variantes, é uma das poucas às quais será realmente possível aplicar o chavão “desde a origem da humanidade”. A festa, considerada em geral, ou as festas, na estonteante multiplicidade das suas formas, vêm de um tempo em que os fluxos culturais aconteciam sobretudo presencialmente, na interacção directa entre pessoas que partilham uma certa intimidade social e cultural.
O festival, por outro lado, é uma criação muito recente. Aparece de maneira muito tímida, no universo da música erudita e do teatro, a partir da segunda metade do século XIX (Orange, Bayreuth, Salzburg…). Mas a sua diversificação temática (qual é hoje a área cultural que não tem pelo menos um?) e a afirmação da sua importância (em particular económica) só se dão progressivamente um século depois, antes de explodir nas últimas décadas. É um produto da modernidade, mas com uma característica algo paradoxal. Aparece num tempo em que uma parte considerável dos fluxos culturais passaram a realizar-se cada vez mais sem contactos directos entre os actores sociais, na sua ausência física, in absentia, uma tendência geral definitivamente consagrada pelo desenvolvimento das tecnologias de informação. Mas o festival vem contrariar esta tendência: proporciona oportunidades de alguns dias de intensas interações presenciais, motivadas por um conhecimento e uma apreciação de um certo estilo musical (ou de outras áreas de criatividade) que perfeitos desconhecidos desenvolvem no resto do tempo em grande parte num ambiente audiovisual e digital, num universo de redes virtuais. E, de repente, os festivais desapareceram. Todos. Como as festas.
“O sumiço”, como se intitula este texto, é também o título da tradução para português do romance de Georges Perec La disparition, escrito em francês sem a letra e, a mais usada naquela língua (Perec 2015). O tradutor brasileiro José Roberto Andrade Féres (que assina com o pseudônimo Zéfere) resolveu transpor esta limitação com o abandono da letra a, que é a mais frequente em português. Semelhantes feitos lipogramáticos, para usar a designação técnica do exercício que faz desaparecer uma letra ou uma categoria de palavras, não são raros na literatura mundial, desde a antiguidade. Existem romances sem pronomes relativos ou sem verbos. A impressionante criatividade que evidenciam mostra que constrangimentos voluntariamente auto-impostos podem ser extraordinariamente estimulantes.
Mas o desaparecimento das festas e dos festivais, como de outras ocasiões de convívio, não foi auto-imposto voluntariamente e de bom grado. Não pretende libertar e estimular, assume-se com uma limitação desagradável que se deseja temporária. Quem tinha a intenção de observar eventos em que as músicas tradicionais procuram encontrar novos ecossistemas propícios ficou com um objecto de estudo desprovido de oportunidades de se manifestar. Organizadores de festas e festivais, de toda a natureza, têm procurado formas mais ou menos criativas de suprir os constrangimentos impostos pela “actual situação”, como se diz: concertos em linha, missas de romarias no Facebook, eventos tentando respeitar normas de distanciamento entre os participantes… Alguns podem reivindicar algum sucesso. O Montreux Jazz Festival substituiu a sua 54ª edição, no lago Lemano, por uma encomenda a grandes grafistas e por um concurso público de cartazes dedicados ao tema Silent shores in 2020 (“Margens silenciosas”), mas acrescentando See you in 2021 (Montreux 2020). “A Romaria d’Agonia, em Viana do Castelo, mobilizou este ano mais de um milhão de pessoas ao longo de cinco dias e com um programa quase exclusivamente através das redes sociais devido à pandemia de covid-19” (O Minho 2020). No entanto, para o Presidente da Comissão de Festas, “este formato não substitui as festas como as conhecemos, nem era esse o objetivo, porque nos faltou aquele rebuliço tão típico” (a tal “efervescência colectiva” de Durkheim). E quem observou tentativas semelhantes nos últimos meses, ou quem acompanhou no Facebook uma romaria à qual costuma participar todos os anos, sabe que se trata de um sentimento generalizado, acompanhado do desejo que “a actual situação” seja provisória.
Organizadores de festas e festivais, de toda a natureza, têm procurado formas mais ou menos criativas de suprir os constrangimentos impostos pela “actual situação”,
Na hora em que se escrevem estas linhas, a plausibilidade desta esperança parece já mais frágil do que no período estival durante o qual têm lugar um grande número de festividades. Os imponderáveis que têm obrigado à adopção de frustrantes soluções de substituição podem não ser tão efémeros como se esperava. Esta incerteza vem acrescentar um grau de complexidade temporal ao estudo de festas e festivais, eventos já por si efémeros, embora regressando ao longo dos anos. As ciências sociais, às quais pertencem os autores deste número da Veduta, têm tentado adaptar-se a um novo contexto que veio modificar alguns dos seus objectos habituais e limitar ou, nalguns casos, impossibilitar a observação directa das interacções sociais. Disciplinas acostumadas a uma reflexão desenvolvida lentamente, aplicada a informações que documentam a longa duração, podem hesitar perante a necessidade de registar e analisar o efémero, produzir uma reflexão num regime de urgência.
Além do efeito paródico, um interesse mais profundo do lipograma reside na desconstrução da linguagem quotidiana, num distanciamento reflexivo por parte tanto de quem concebe e emite o discurso como de quem o recebe. E o esforço ao qual submete o texto pode resultar num questionamento e numa eventual reformulação do modo de funcionamento habitual do género narrativo ao qual este pertence, a uma reinvenção. É frequente os cientistas sociais interrogarem-se sobre como comunicar os seus trabalhos. A publicação em linha, como é o caso com este número da Veduta, pode abrir perspectivas novas, possibilidades interactivas inovadoras. Mas – além de não se atrever a recorrer a um exercício de estilo tão radical como o lipograma – este artigo não faz qualquer apresentação, não mostra qualquer fotografia, não partilha qualquer gravação do pequeno festival minhoto cuja organização e realização o seu autor tem acompanhado: não teve lugar em 2020 e não foi possível obter materiais. O encontro juntou-se a todas as festas que sumiram.
Este artigo não faz qualquer apresentação, não mostra qualquer fotografia, não partilha qualquer gravação do pequeno festival minhoto cuja organização e realização o seu autor tem acompanhado: não teve lugar em 2020 e não foi possível obter materiais.