Árvores-memória
Um projeto de investigação em torno do património arbóreo de Guimarães.

Da possibilidade de ser árvore
É possível que uma árvore, frondoso arquivo vegetal, que nos acolhe sob a sua sombra, possa tomar um valor essencial na nossa vida? Objeto de uma afeição sem motivo aparente, testemunha silenciosa dos dias que passam, sintonizando-nos com o ritmo oscilante das estações, vemo-la coroar-se de flores ainda antes do inverno terminar, revestir-se de folhagem nova na primavera, carregar-se de frutos no estio, desfolhar-se, por fim, a caminho do inverno. Que dizer de uma árvore concreta como esta, cujo nome próprio um dia descobrimos, situada num local por onde passamos amiúde? Uma árvore enlaçada na vida de pessoas igualmente concretas, com rosto e com história. Uma árvore que nos liga a um território quotidiano, vernacular, como uma presença visível, ainda que discreta. Uma árvore que se torna indispensável, ainda que não nos pertença. Será isto possível?
Podemos imaginar, auspiciosamente, uma resposta que não pode ser senão afirmativa. E podemos imaginar ainda, a partir das interrogações lançadas, um território feito desta possibilidade, pontuado por árvores significativas, que perduram na nossa memória mesmo depois de desaparecidas. Árvores essenciais, portanto. Árvores que nos ligam e às quais permanecemos ligados, cuja presença e cuja memória se configuram no horizonte da vida quotidiana.
Da memória sobre as árvores
Ora, como indagar os vínculos que estabelecemos com as árvores, procurando quem seja capaz de nos informar, sem incitar os demónios da suspeição? Como podemos aproximar-nos das memórias sobre as árvores, memórias fugidias por natureza, que vêm e vão, sempre abertas a um detalhe omisso que de repente é lembrado? Como conversar demoradamente sobre árvores num tempo em que não há tempo a perder? Ou num tempo confinado, por imposição sanitária, em que, ao invés, todo o tempo parece deitar-se a perder? Por onde começar este labor, deixando que sejam as árvores a conduzir-nos, refazendo-se incessantemente a partir da memória?
Ir ao encontro de memórias sobre as árvores exige um sentido de oportunidade que não nos compete determinar. Temos sobretudo que nos tornar presentes, dar-nos a conhecer sem rodeios aos nossos interlocutores, encontrando nas árvores um denominador comum. Temos que dispor do tempo suficiente para que a memória possa emergir por si mesma, sem cairmos na tentação recorrente de a forçar. Temos que envolver os informantes, mantendo um contacto regular, entusiasmando-os, aguardando a todo o momento que a memória se revele. Temos de pôr-nos à escuta, portanto.
Do projeto árvores-memória
Em agosto de 2017, após os contactos estabelecidos por Catarina Pereira e Eduardo Brito, d’A Oficina – Centro de Artes e Mesteres Tradicionais de Guimarães / Casa da Memória de Guimarães (CDMG), começou a desenhar-se o projeto Árvores-Memória, cujo desígnio seria abrir uma linha de investigação sobre património arbóreo e memória. O ponto de partida deste projeto tomaria a forma de uma questão: como pode a memória sobre as árvores contribuir para a valorização e salvaguarda do património dendrológico de Guimarães, de forma articulada com outras dimensões do património cultural? Uma questão ambiciosa, abrangente, motor de um projeto cujo escopo é constituir uma rede de árvores-memória, e cujos resultados tangíveis sejam integrados no Repositório da CDMG. Procuramos, assim, árvores significativas por via das relações com elas estabelecidas, árvores cujo carisma não reside forçosamente na sua monumentalidade ou aparato, nem noutros critérios previstos na Lei n.º 53/2012, de 5 de setembro, que estabelece o regime jurídico da classificação de arvoredo de interesse público. Procuramos árvores que, avaliadas a partir dos “campos de significação da memória social na paisagem” (Crichyno 2013: 62) nos permitem aferir o modo como são vivenciadas e partilhadas relações existenciais, abrindo este projeto a uma dimensão que transcende um mero registo dendrológico.
O projeto Árvores-Memória, começou por ter uma duração prevista de um só ano, a tempo inteiro, acabaria por ser distribuído por três anos consecutivos – 2018, 2019 e 2020 – com uma alocação equivalente a cerca de dois meses de trabalho efetivo em cada ano, de modo a ajustar-se ao orçamento disponível. A proposta inicial, sujeita a reformulação, seria finalmente aceite em julho de 2018, tendo-se iniciado então a primeira fase do projeto. Porém, ao longo de 2019 ocorreram alterações na estrutura organizativa d’A Oficina que conduziriam a uma reformulação substancial do projeto, dado ter-nos sido solicitada a conclusão dos trabalhos nesse mesmo ano; o trabalho de pesquisa culminaria com uma visita ao território, em setembro de 2019, realizada no âmbito da iniciativa “Caminhos em Volta“.
Face a esta circunstância, procuramos dilatar o prazo de entrega dos elementos finais, evitando truncar a pesquisa em curso. Porém, em 2020, o confinamento decorrente do surto pandémico de COVID-19 condicionou o desenvolvimento almejado para o projeto. Já em 2021 surgiria, contudo, uma oportunidade para retomar o projeto, através da divulgação pública dos trabalhos desenvolvidos, compreendendo a publicação de dois artigos e uma comunicação a apresentar num colóquio sobre património arbóreo, organizado pel’A Oficina. O primeiro artigo foi publicado na Revista Oficina n.º 1/2021 (Fernandes 2021), tendo-se seguido uma conversa online, gravada em fevereiro de 2021, integrada no ciclo de conversas “Outros Futuros”.
No presente artigo, apresentamos uma síntese da investigação desenvolvida, perspetivando a eventual continuidade desta linha de trabalho.
Doutras iniciativas e doutras árvores
Percursos de visitação
Centro de Interpretação do Carvalho de Calvos
A existência de um carvalho-alvarinho monumental na extinta freguesia de São Gens de Calvos, na Póvoa de Lanhoso, classificado de interesse público em 1997, considerado um dos carvalhos mais antigos da Europa, motivou a criação de um centro de interpretação ligado a esta árvore, por iniciativa municipal. Inaugurado em 2000, nele se realizam visitas guiadas e outras atividades de educação e sensibilização ambiental, sendo o parque envolvente ao carvalho frequentado como espaço de lazer e recreio. Também conhecido por “carvalha da Fundôa”, a esta árvore se ligam memórias e vivências locais, tendo passado a ser, em 2010, a insígnia oficial do brasão, bandeira e selo da freguesia (atualmente integrada na União das Freguesias de Calvos e Frades) (Silva 2018: 594-596).
Roteiro Botânico da Pousada de Santa Marinha da Costa
O parque e os jardins deste antigo mosteiro jerónimo, situado na encosta da Penha, sobranceiro à cidade de Guimarães, são um espaço com elevado valor patrimonial e paisagístico, classificado de interesse público em 1940. O edifício monástico e os espaços envolventes foram reabilitados de forma criteriosa e adaptados a uma pousada, inaugurada em 1985, atualmente designada Pousada do Mosteiro de Guimarães. O roteiro botânico, em cuja conceção colaboramos, foi implementado em 2013 e pode ser percorrido com o auxílio de um desdobrável que localiza e descreve as principais espécies arbustivas e arbóreas, estando assinaladas algumas árvores com especial interesse dendrológico (Fernandes 2014). A este espaço, e às suas árvores, se vinculam as memórias e vivências de antigos alunos do Seminário do Verbo Divino, que aqui funcionou entre 1952 e 1962. Nele se encontrava uma árvore notável, a Carvalha de D. Mafalda, uma das árvores-memória que adiante mencionamos.
Bosque Erasmus da Universidade do Minho
Esta iniciativa, inaugurada em 2017, consistiu na plantação e sinalização de um conjunto de 30 árvores no Campus de Gualtar (Braga) e no de Azurém (Guimarães), da Universidade do Minho, para assinalar os 30 anos do programa de intercâmbio académico Erasmus. Junto de cada árvore encontra-se um poste informativo tubular, com a identificação botânica e um código QR, dando acesso a uma ficha descritiva de cada espécie. As árvores plantadas são oriundas dos vários países europeus que integram o programa Erasmus, representando a sua diversidade cultural. Juntamente com as árvores foi enterrada, em ambos os locais, uma “cápsula do tempo”, contendo o convite para a inauguração, um mapa do campus, a primeira página dos jornais do dia, o hino da Universidade e mensagens dos alunos Erasmus sobre a sua experiência na Universidade do Minho.
Projetos expositivos
Centro Ciência Viva da Floresta
O Centro Ciência Viva da Floresta, inaugurado em 2007, em Proença-a-Nova, é um espaço interativo, lúdico-pedagógico, cujo eixo programático central é a floresta como fonte de conhecimento. O percurso expositivo pretende sensibilizar os visitantes para a riqueza, diversidade e fragilidade dos ecossistemas florestais, evidenciando as árvores como unidades básicas da floresta. Nele se inclui um módulo sobre dendrocronologia, que permite viajar ao longo dos anéis de crescimento de uma árvore, relacionando a sua datação com acontecimentos da história humana.
Projetos editoriais
A árvore em Portugal
Francisco Caldeira Cabral e Gonçalo Ribeiro Teles
Lisboa: Assírio & Alvim, 2.ª ed. rev., 1999, ISBN 972-37-0538-9
Obra de referência, cuja primeira edição é de 1960, nela se aborda a árvore de uma forma integradora, em termos paisagísticos, culturais e ecológicos. Motivada pela necessidade de alterar práticas de tratamento da árvore no espaço urbano, como as podas drásticas, o seu âmbito alarga-se às funções da árvore e da floresta na paisagem portuguesa. Mais do que um manual técnico, esta obra continua a ser um instrumento de divulgação científica e cultural, que pretende contribuir para a dignificar a presença da árvore na paisagem urbana e rural.
À sombra de árvores com história
Paulo Ventura Araújo, Maria Pires de Carvalho e Manuela Delgado Leão Ramos
Porto: Campo Aberto, 2004, ISBN 972-9071-77-2
Obra dedicada às árvores notáveis do Porto e aos espaços urbanos onde se encontram, evocando a rede de protagonistas históricos – jardineiros, horticultores e paisagistas – que contribuíram para a arborização da cidade.
Cada capítulo é dedicado a uma árvore, ou família de árvores, relacionadas com determinado espaço, estabelecendo uma ponte com a história da cidade. Os autores produziram uma narrativa integradora, através de referências literárias, históricas e botânicas, reconstruindo a memória dendrológica da cidade do Porto.
Histórias saídas das árvores. Um arboretum português
Susana Neves
Lisboa: By the Book, 2012, ISBN 978-989-8614-03-2
Obra que propõe um percurso pela história cultural de três dezenas de árvores presentes na paisagem portuguesa, que a autora descreve como “histórias de árvores em fuga”. Nela se mencionam aspetos simbólicos e mitológicos associados às árvores, permeados por apontamentos literários e artísticos, e aspetos da sua apropriação botânica e difusão por mão humana. Resultado de um conhecimento in loco, em diversos pontos do país, esta obra procura restituir a sensação singular conferida pela presença das árvores, a que se ligam algumas das nossas vivências mais essenciais.
Outros projetos
Concurso da Árvore Europeia do Ano
Realizado pela primeira vez em 2011, inspirado no concurso “Árvore do Ano” organizado pela associação checa Nadace Partnerství, este concurso europeu procura divulgar árvores notáveis, associadas a histórias e vivências. Nele participam as árvores vencedoras dos vários concursos nacionais, envolvendo atualmente 14 países. O propósito do concurso é destacar a importância das árvores antigas no património cultural e natural, não se focando apenas na beleza, tamanho ou idade das árvores, mas sobretudo na sua história e nas relações com as pessoas. Em Portugal, o concurso nacional é organizado desde 2017 pela UNAC – União da Floresta Mediterrânica, sendo primeiro vencedor o “sobreiro assobiador” de Águas de Moura, em Palmela, eleito como árvore europeia do ano em 2018.
Da metodologia do projeto árvores-memória
Enquadrado por estas iniciativas, o projeto Árvores-Memória desenvolveu-se a partir de uma prospeção de fontes de informação pertinentes, privilegiando os testemunhos de informantes que pudessem partilhar memórias e vivências sobre árvores de Guimarães. De forma complementar, foram exploradas outras fontes de informação, nomeadamente fontes manuscritas, fontes impressas, fontes iconográficas e audiovisuais, e fontes eletrónicas online, tal como se menciona em seguida.
Fontes orais
O contacto com informantes estabeleceu-se a partir de conhecimentos pessoais e de contactos sugeridos pela CDMG, formando de uma rede de proximidade que se foi alargando progressivamente. Foram contactados cerca de 40 informantes, com perfil diversificado, em termos etários, de género, ocupação profissional e freguesia de residência. Com exceção de dois contactos feitos por via telefónica, as entrevistas com os informantes foram realizadas presencialmente, em modalidade informal e de entrevista aberta, permitindo identificar tópicos sobre os quais os informantes possuem memórias ou vivências relevantes. Alguns dos testemunhos recolhidos foram convertidos em pequenos textos narrativos, validados pelos respetivos informantes. Um dos informantes, A. P., tomou mesmo a iniciativa de redigir uma pequena memória sobre as árvores que considera mais significativas em Guimarães.
Fontes manuscritas
A consulta de fontes manuscritas foi realizada em arquivos públicos e outros repositórios, de que se destacam o Arquivo Municipal Alfredo Pimenta e a Sociedade Martins Sarmento, tendo abrangido documentos particulares e de coletividades. Das fontes consultadas, têm especial interesse as Efemérides Vimaranenses, em quatro volumes, coligidas por João Lopes de Faria, pertencentes à Sociedade Martins Sarmento.
Fontes impressas
Na pesquisa de fontes impressas, encontramos informação relevante em várias categorias de publicações:
- Publicações periódicas, especialmente revistas de horticultura, revistas de etnologia e etnografia, revistas geográficas, e jornais e revistas generalistas, de âmbito local ou nacional. Especial atenção foi dada à Revista de Guimarães, ao Boletim de Trabalhos Históricos e aos títulos da imprensa periódica local, que constituem uma fonte privilegiada de informação.
- Monografias e outras obras autónomas, nomeadamente obras corográficas de caráter histórico, memórias paroquiais, relatos de viajantes, obras geográficas, e atas de encontros históricos e etnográficos, entre outras. É especialmente relevante o Fundo Local da Biblioteca Municipal Raul Brandão. Foram também consideradas obras literárias que mencionam árvores em Guimarães como, por exemplo, as Memórias de Raul Brandão.
- Fontes cartográficas e toponímicas, compreendendo as cartas correntemente utilizadas, publicadas pela Direção-Geral do Território e pelo Centro de Informação Geoespacial do Exército. A pesquisa toponímica abrangeu o Reportório Toponímico de Portugal, publicado pelo ex-Serviço Cartográfico do Exército, e foi dada especial atenção aos topónimos registados em fontes cartográficas históricas que abrangem o concelho de Guimarães, cuja pesquisa está ainda em curso.
- Outras fontes impressas, como teses e relatórios académicos inéditos, guias turísticos, folhetos e outros documentos impressos, não incluídos nas categorias anteriores, contendo eventuais informações sobre árvores em Guimarães.
Fontes iconográficas e audiovisuais
Esta pesquisa procurou localizar espécimes de desenho, pintura e gravura que representem árvores de Guimarães, dando especial atenção à coleção de pintura e gravura da Sociedade Martins Sarmento, às obras do Centro Internacional das Artes José de Guimarães, e às coleções iconográficas do Museu Nogueira da Silva, em Braga, e da Biblioteca Pública Municipal do Porto, cuja pesquisa se encontra em curso.
No que respeita à fotografia, foram consultadas as publicações resultantes do projeto Reimaginar Guimarães, cujo acervo base é a Coleção de Fotografia da Muralha – Associação de Guimarães para a Defesa do Património. Foram consultados outros repositórios, como o Centro Português de Fotografia e o Arquivo de Documentação Fotográfica da Direção-Geral do Património Cultural, e ainda publicações periódicas especializadas, dedicadas à fotografia.
Esta pesquisa abrangeu também o cinema e o vídeo, através de filmes com referências a árvores de Guimarães, de que são exemplo Nicolinas (dir. Rodrigo Areias, 2000) e Onde a estrada acaba (dir. Rui Dias, 2012).
Fontes eletrónicas
Esta categoria é transversal às fontes de informação acima mencionadas, nela se incluindo repositórios online, como o Registo Nacional do Arvoredo de Interesse Público, a Hemeroteca Digital / Hemeroteca Municipal de Lisboa, e a Hemeroteca da Casa de Sarmento. Foram também pesquisados blogues relacionados com o tema, nomeadamente Dias com Árvores e Memórias de Araduca, pertinentes para o projeto Árvores-Memória.
Das árvores-memória de Guimarães

Sobreiro velho da Citânia
Este espécime de sobreiro (Quercus suber L.) encontra-se no Monte de São Romão, na atual União das Freguesias de Briteiros São Salvador e Briteiros Santa Leocádia, mais exatamente na acrópole da Citânia de Briteiros, junto às habitações castrejas reconstruídas por Francisco Martins Sarmento (1833-1899). É uma árvore destacada, visível em clichés captados c.1874 por este notável arqueólogo e fotógrafo pioneiro, o que permite atribuir-lhe uma idade não inferior a dois séculos. Outrora uma árvore frondosa, foi rodeada por um murete de pedra, que a terá resguardado, permitindo repousar sob a sua copa; encontra-se atualmente decrépita, mas permanece em pé, no cimo do monte. Juntamente com outros sobreiros próximos, também longevos mas ainda vivos, terá originado o sobreiral que reveste parte da Citânia, evocação de uma ambiência vegetal pretérita, que remonta à época castreja. É, deste modo, uma “árvore genealógica”, que define o espírito do lugar e nos liga à época em que a Citânia foi habitada (Fernandes 2020). Algo que terá escapado à perceção dos técnicos do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), numa vistoria efetuada em 2018, limitando-se a constatar que o sobreiro se encontrava “totalmente seco e parcialmente destruído, sem possibilidade de recuperação”, dando por extinto o processo de classificação de interesse público requerido pela Câmara Municipal de Guimarães (Despacho n.º 260/2019, de 3-01-2019, emitido pelo vogal do Conselho Diretivo do ICNF). Tal não nos impede de considerar esta árvore um testemunho vegetal singular, digno de consideração, cuja forma continua a ser esculpida pelo tempo, à medida que se vai decompondo naturalmente.
A pesquisa efetuada permitiu reconstituir uma série de imagens fotográficas deste sobreiro, desde os clichés de Martins Sarmento até à foto captada em 2018 por Duarte Belo, publicada pela CDMG em Depois do Tempo. Guimarães 1988-2018 (Belo 2019). Especial interesse tem uma imagem estereoscópica, captada em 1935 por Adelino Furtado, ex-governador civil de Leiria, possivelmente durante uma visita familiar, numa época em que a Citânia já se encontrava servida por uma estrada, facilitando o acesso regular de visitantes.
Outros sobreiros e um objeto-memória
Existem em Guimarães outros sobreiros que podem ser considerados árvores-memória. Um deles localiza-se em Briteiros São Salvador, no sopé do Monte de São Romão, à entrada de uma propriedade privada, estendendo a sua copa sobre a EN309; outro situa-se em Souto Santa Maria, dando nome à Rua do Sobreiro nesta localidade; outro ainda é mencionado pelo engenheiro silvicultor Ernesto Goes, na sua obra sobre as árvores monumentais de Portugal (Goes 1984), situando-se na mata do Paço de São Cipriano, em Tabuadelo; árvore multissecular, “muito conhecida na região”, chegou a ser classificada de interesse público, mas entretanto desapareceu. Aos sobreiros está associada uma atividade específica – a extração de cortiça -, que em Guimarães é praticada de forma difusa, dada a dispersão destas árvores no território. Um dos nossos informantes, C.R., residente em Urgeses, recorda esta prática no Monte de Santa Catarina, nos sobreiros pertencentes a sortes de mato, ou seja, terrenos onde era roçada vegetação para as camas do gado. Da cortiça extraída faziam-se cortiços para apicultura, sendo o “Guido” uma das pessoas da freguesia que sabia fazê-los, em troca da cortiça oferecida pelos proprietários dos sobreiros. O nosso informante possui ainda um destes cortiços, objeto de estimação cuja memória liga os sobreiros à ancestral produção de mel.

Carvalha de D. Mafalda
Quando um carvalho-alvarinho (Quercus robur L.) atinge uma longevidade assinalável, afrouxando o crescimento em altura e expandido a sua copa, copiosa geradora de bolotas, pode mudar de género gramatical, passando a ser designado por carvalha (ou carvalheira). Uma das mais célebres carvalhas de Guimarães situava-se na cerca do antigo mosteiro de Santa Marinha da Costa, e a ela já aludimos, a propósito do roteiro botânico ali implementado. As referências mais antigas que encontramos sobre esta árvore devem-se a Inácio de Vilhena Barbosa (1811-1890), historiador e arqueólogo, que, num artigo publicado em 1858, menciona as árvores seculares do mosteiro da Costa, “d’entre as quaes avulta o celebre carvalho plantado pela rainha D. Mafalda, mulher d’el-rei D. Affonso Henriques” (Barbosa 1858: 296). Um século antes, num tratado histórico manuscrito, atribuído a frei Francisco Xavier Pereira Camello (1748), é mencionada a abundância de carvalhos da cerca monástica, sem que seja feita qualquer referência a árvores que se destaquem pelo seu porte ou pela sua origem; temos, assim, margem para questionar a forma como certas tradições surgem e se propagam… Em artigos publicados posteriormente, Vilhena Barbosa esclarece que existiam na cerca do mosteiro dois carvalhos colossais, cuja plantação é atribuída à rainha fundadora, um dos quais havia secado c. 1834, conservando-se o outro frondoso e cheio de viço, supondo-se ter então sete séculos de idade; o tronco principal, medido em 1845, tinha 47 palmos de circunferência, ou seja, quase 10 m, sendo considerado uma das maiores árvores de Portugal, “verdadeiro monumento do reino vegetal” (Barbosa 1864: 340; 1875: 196). Duas fotografias desta árvore atestam a sua monumentalidade: uma, captada pelo Pe. Joaquim da Silva Tavares, fotógrafo e naturalista, foi publicada no fascículo da revista Brotéria de junho de 1925; outra, captada por Alexandre Lima Carneiro, médico e etnógrafo são-tirsense, publicada no 6.º volume dos Estudos Etnográficos, Filológicos e Históricos de Augusto Pires de Lima, em 1951.
Esta carvalha viria a sucumbir na início da década de 1990, já depois da abertura da pousada, tendo dela subsistido, além das imagens fotográficas, dois ramos com folhas, colhidos em 1953 pelo missionário brasileiro e professor de botânica, Pe. Leopoldo Krieger, durante a sua passagem pelo seminário verbita da Costa. Este testemunho vegetal encontra-se atualmente depositado no herbário da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, onde o Pe. Krieger foi professor e também um notável explorador da floresta amazónica (Salimena & Neto 2008). V. G., um antigo aluno do seminário verbita, onde entrou em 1956, recorda a “carvalha velha”, árvore muito grande, com muitos nichos, “onde teria sido guardado o Santíssimo” durante o incêndio que, em 1951, devastou a ala sul do antigo edifício monástico o que, a confirmar-se, faria dela uma “árvore-sacrário”. Recordação bem distinta é a da nossa informante E. G. que, na década de 1960, já depois de o seminário se ter transferido para as novas instalações na Madre de Deus, em Azurém, encontrava na antiga cerca monástica um espaço propício ao lazer, passeando em companhia daquele que viria a ser o seu marido. Uma das fotos do seu álbum particular retrata ambos sobre o fuste da Carvalha de D. Mafalda, entre as colossais pernadas da árvore.
Carvalha da Condessa
Durante os trabalhos de pesquisa do projeto Árvores-Memória, foi-nos mencionada pelo nosso informante A. M. a existência de uma árvore emblemática na freguesia de Ronfe, que prontamente visitamos, tendo-nos deparado com aquele que é, possivelmente, o maior exemplar vivo de carvalho-alvarinho no concelho de Guimarães. Localizado à entrada da Quinta da Condessa, as medições que efetuamos em maio de 2019 mostram que a sua altura é de 22,5 m, sendo o diâmetro médio da copa ligeiramente superior (23,8 m), ou seja, é uma árvore quase tão alta como copada. O diâmetro à altura do peito é de 1, 3 m, e o perímetro correspondente é de 4,1 m. Atendendo a estas dimensões, a sua idade poderá atingir 300 anos. A árvore nasceu numa fenda do muro da propriedade que, segundo o nosso informante, foi reconstruído por um pedreiro local, c. 1950, de modo a incluir a carvalha no interior da propriedade. É uma árvore que serve de referência à comunidade local, sobretudo como ponto de encontro. Contudo, uma vizinha que entrevistamos, F. S., não associa à árvore qualquer significado especial, limitando-se a dizer, quanto à sua origem: “cai landres e elas nasce”; sobre a longevidade da árvore, diz-nos: “tenho 77 anos e ela já era carvalheira” quando nasceu. A proprietária atual da quinta, A. S., recorda brincadeiras infantis em torno e em cima da carvalha e o desvelo com que a sua avó tratava a árvore, acrescentando: “o meu pai diz que lá em cima se dorme muito bem”, evocação que nos poderia remeter para O Barão Trepador, de Italo Calvino, e para toda uma vida em cima das árvores.
Esta carvalha foi a “protagonista” da visita ao território a que já aludimos, organizada pela CDMG em parceria com a Talkie Walkie, efetuada em 21 de setembro de 2019, na qual participou um grupo de pessoas sem receio da chuva que caiu desse dia equinocial.

Outros carvalhos e carvalhas
Durante a pesquisa, encontramos dois exemplos de defesa de carvalhos antigos, que revelam os vínculos que podem ser estabelecidos com estas árvores. O primeiro exemplo, registado pelo Pe. António Ferreira Caldas, na sua monografia sobre Guimarães, diz respeito à conservação de um carvalho “secular e magestoso”, existente num dos largos fronteiros à igreja de Santa Marinha da Costa. A sua conservação deveu-se à intervenção do vigário frei Francisco de Sousa, que “energicamente se opôz ao dono da propriedade de Sant’Anna”, perto dali, quando este o quis derrubar, em outubro de 1836 (Caldas 1881: 175). Um século depois, um outro carvalho mereceu igualmente uma atitude pública de salvaguarda. Num artigo publicado n´O Comércio de Guimarães em 6 de novembro de 1936, não assinado, a propósito das obras então levadas a cabo no Campo do Salvador – atual Campo de São Mamede –, pede-se que a “enorme e majestosa carvalha” existente ao cimo deste terreiro, onde então se realizava a feira de gado, seja amparada com “um socalco bem largo e bem subido” que dê estabilidade às suas raízes. O anónimo articulista acrescenta: “[a]s carvalhas foram sempre consideradas as rainhas das árvores nortenhas. Têm pois, majestade e caracter e para além de todas se impõe pela sua compostura e pela familiaridade que têm com os solares mais abastados e com as cêrcas mais ricas das mais ricas casas do Norte. Cuidando dela, teremos um regalo para os nossos olhos e daremos sombra aos feirantes que a ela se acolhem nos dias abrasados”. Na edição do mesmo jornal, do dia 27 seguinte, o articulista regozija-se com o facto de a sugestão ter sido bem acolhida pelo vereador das obras municipais, que entendeu que “aquele trabalho de defesa e de proteção se impunha”, tendo principiado então as obras respetivas.
Um outro carvalho, outrora existente em Nespereira, “árvore contemporânea da fundação da monarquia”, terá sido um dos motivos decisivos para o escritor Raul Brandão (1867-1930) adquirir, em 1899, a Casa do Alto, então arruinada; as obras de reconstrução prolongaram-se até cerca de 1912, ano em que o escritor se mudou para ali com a sua esposa, iniciando a fase mais produtiva do seu percurso literário, residindo na Casa do Alto até final da vida. Nas suas Memórias recorda o momento em que conheceu esta árvore: “O carvalho centenário cobria todo o eido. Era enorme, era prodigioso. No tronco, que nem seis homens podiam abranger, tinham os bichos as luras e o seu hálito sentia-se ao longe. Logo que o vi fiquei apaixonado. – Vamos viver juntos, vou envelhecer ao pé de ti. – Nós não ouvimos as árvores, mas a sua alma comunica sempre connosco: sua fôrça benigna toca-nos e penetra-nos…” (Brandão 1925: 17-18). Este é, pois, um exemplo claro do vínculo essencial que pode ser estabelecido com uma árvore.
Considerações finais
Ao longo deste trabalho foram sinalizadas diversas pistas de pesquisa, que poderão ser desenvolvidas, caso surja a possibilidade de aprofundar esta linha de trabalho, desejavelmente com o contributo de uma equipa pluridisciplinar. Assim se poderão colmatar várias lacunas de investigação e reequacionar o papel da memória na nossa relação com as árvores. O projeto Árvores-Memória, pelas circunstâncias em que foi realizado, não constitui um ponto final ou um ponto de chegada. Será, mais propriamente, um preâmbulo a um estudo maior, que poderá prolongar-se no tempo e aproximar-nos dos aspetos essenciais da nossa relação com as árvores que nos rodeiam.
Dr.ª Catarina Pereira, d’A Oficina, pelo seu apoio permanente ao longo deste trabalho.
Arq.ª Paisagista Rita Salgado, do Departamento de Urbanismo da Câmara Municipal de Guimarães, pela sua colaboração.
Dr.ª Fátima Regina G. Salimena e ao Prof. Vinícius Antonio de Oliveira Dittrich, do Departamento de Botânica – Herbário CESJ, Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais – Brasil. Aos funcionários/as do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta e da Sociedade Martins Sarmento, pela sua disponibilidade.
A todos/as os/as informantes por nós contactados que partilharam, generosamente, as suas vivências e memórias sobre árvores.