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Editorial

Coordenadora Editorial
Marta Silva

Uma Casa é um lugar para habitar

 

Esta Casa é feita de paredes, telhados, janelas e portas.

Tem salas, cozinha e pátio.

Só falta o quarto. Porque até cama e enxoval já tem.

Tal como as outras casas, esta é também recheada de objetos, de fotografias, de documentos, de filmes, de cheiros e de sons. E memórias. Muitas. De histórias e saberes que passaram de pé em pé, de mão em mão, do nariz para a cabeça, dos olhos para o coração, ou da boca para o ouvido.

Um lugar que se dedica a essas histórias, expondo conteúdos que contribuam para um melhor conhecimento da cultura e território de Guimarães e das suas pessoas.

A Casa da Memória é um centro de interpretação e conhecimento.

Um sítio onde se fala de memória, do tempo, de perguntas e de pessoas.

E é com pessoas que trabalhamos para habitar esta Casa.

 

A Edição 16 da Veduta dedica-se a olhar o arco temporal de meados de 2020 a final de 2022 de programação da Casa da Memória de Guimarães. Uma programação feita a partir da unidade de pensamento de Educação e Mediação Cultural (EMC), voltada para a concretização da vontade de aproximar a Casa da Memória às pessoas de Guimarães.

Esse caminho até à comunidade faz-se pelo território. Faz-se percorrendo avenidas, ruas, vielas e campos. A bater às portas de casas, de escolas, de oficinas, de fábricas e de lojas.

O plano de viagem desenrolou-se entre projetos de arquivo com o território (como O Colecionador de Sons e Entardecer com Contos), projetos com a vizinhança (como Catálogo Poético de Produtos “Únicos” do Comércio Tradicional de Guimarães e Selva Coragem), projetos com a comunidade (como Velha Infância, Dar Corda à Casa, Dar Rufo à Casa e As canções que cantamos contra os muros que limpamos), um projeto artístico de interpretação patrimonial de continuidade (Pergunta ao Tempo), uma investigação (artigo sobre Pergunta ao Tempo) e uma edição (Seiva); a par e passo com programação de espetáculos (Vamos Comprar um Poeta), visitas especiais e oficinas criativas (À Lupa, Domingos na Casa); e dança, música e teatro em festas que celebram a passagem do tempo (Aniversários da Casa da Memória).

Pelo sentir de artistas convidad_s com as pessoas da comunidade de Guimarães criaram-se: arquivos sonoros e música; instalações expositivas de memórias e performances; sessões de narração oral tradicional; percursos e ilustrações de lugares e produtos únicos; uma bioinstalação; um coro de vozes e histórias no feminino; tocatas de instrumentos com história no território; e contínuas transformações do espaço expositivo da Casa da Memória pela mão das crianças.

Nesta edição da Veduta dá-se destaque a algumas destas propostas artísticas.

Programando projetos que cumpram a função de arquivo e também de auscultação do território e aproximação às pessoas, a Casa da Memória criou o projeto O Colecionador de Sons (2020), com Arca de Sons – Daniel Pereira Cristo. Um projeto que, num ano em que se arredaram as pessoas dos espaços de lazer, percorreu o território de Guimarães, fazendo caminhos de encontro, para o recolher de sons, cantigas, dizeres e paisagens sonoras, naturais, citadinas, artesanais ou industriais.

O acervo sonoro recolhido, ficou disponível para consulta no Repositório. E, a este, mais tarde, numa altura que já podíamos melhor estar junt_s, somou-se uma estória, uma criação artística de música eletrónica contemporânea, apresentada à comunidade.

Com Velha Infância (2021), de Vera Alvelos, a exposição da Casa da Memória foi ampliada para passar também a ocupar o exterior, como que despontando raízes para o Pátio. Também num momento em que as pessoas tiveram de estar afastadas umas das outras, Velha Infância veio a revelar-se como o reflexo da urgência de projetos de arte participativa. Projetos em que a comunidade é criadora.

Velha Infância foi um projeto sobre a memória, sobre o tempo. Um projeto que trouxe ao presente o tempo em que os mais velhos foram crianças.

Uma exposição ficou patente durante uma temporada no Pátio da Casa da Memória e foi inaugurada para comunidade com uma encenação criada com _s participantes.

A extensão da ligação da Casa da Memória ao território aconteceu também além dos seus portões, para chegar até à vizinhança, às lojas do comércio tradicional, abertas a todas as pessoas que quiseram entrar.

Com o Catálogo poético de produtos “únicos” do comércio tradicional de Guimarães (2021), de Marina Palácio, desenhou-se um percurso, uma visão, em torno daquilo que faz dos espaços comerciais autênticos lugares de memória e de encontro.

Para acompanhar com voz diferentes luzes e lugares bonitos de fim de tarde dentro da Casa da Memória, António Fontinha foi convidado para Entardecer com Contos (2021), em três momentos ao longo do ano.

Este projeto recuperou o património de narração oral em Guimarães, inicialmente levantado num projeto anterior. Narradores locais juntaram-se a estes serões – Joaquim Teixeira e Raul Pereira – cujas vozes poderão agora para sempre serem encontrados num lugar que é não para olhos, mas para ouvidos – o Repositório da Casa da Memória.

Como relação longa em torno da paisagem sonora, surgiu Dar Corda à Casa (2022) e, mais tarde, Dar Rufo à Casa (2022), que partiram de O Colecionador de Sons (2020), de Daniel Pereira Cristo, a quem outros artistas se uniram – Paulo Capela e Mário Gonçalves.

Estes dois projetos juntaram na Casa da Memória pessoas e instrumentos, em criação e exploração sonora, valorizando a memória, o património e a tradição em torno de cordofones e de percussão.

Pergunta ao Tempo é atualmente assumido como um projeto artístico de interpretação patrimonial. Um projeto que procura originar a descoberta na comunidade de elementos patrimoniais para a reinterpretação de cada um dos núcleos expositivos permanentes da Casa da Memória. Ao longo de um ano letivo, desenvolvem-se estratégias de pesquisa, recolha e documentação do património cultural do território, na sua materialidade e imaterialidade, e inspiram-se momentos de criação artística, numa relação de proximidade com crianças, famílias, professor_s e comunidade local.

Desta experiência, para além de visitas e oficinas, resulta uma exposição final com criações artísticas compostas por objetos, histórias e testemunhos, nos mais diversos formatos, que coabitam e dialogam com o próprio espaço museológico da Casa da Memória.

Pergunta ao Tempo foi um projeto absolutamente marcante na definição da missão da unidade de Educação e Mediação Cultural d’A Oficina e merece nesta edição da Veduta um destaque especial, sob a forma de artigo. Este projeto continua a ser uma fonte de inspiração e, concomitantemente, o que de mais próximo a um laboratório de ideias podemos ter.

É um lugar onde podemos desmistificar o que é o conhecimento, o que é a cultura, na relação com as pessoas.

Numa busca de diletantismo, a intervenção da EMC, com o Pergunta ao Tempo, passa por proporcionar experiências de encontro suscetíveis de gerarem questionamento, reflexão e transformação.

Mais que, com as crianças, pesquisar, recolher e documentar o património cultural da nossa comunidade, sobretudo pretende-se refletir sobre as formas como o pensamos, representamos e tratamos, instigando assim uma atitude interpeladora e questionadora perante a aprendizagem, perante o mundo, perante aquilo que faz o nosso quotidiano em casa e na rua. Todos os momentos de encontro e de discussão despertam a reflexão, a análise, a argumentação, a formulação de ideias, a gestão de opiniões e o sentido crítico. Aqui pensa-se sobre o pensamento. Fazem-se perguntas (ao tempo) e nem todas precisam de resposta.

Esperamos que esta visão em torno da programação da Casa da Memória, entre meados de 2020 e final 2022, seja reveladora da motivação em tornar este espaço como um espaço de tod_s.

A Educação e Mediação Cultural d’A Oficina assumiu a missão de expandir a Casa da Memória e constituí-la como espaço de transformação e mudança cultural e social. Na EMC acreditamos que este lugar é matéria modificável, na corporeidade – como é tão-somente uma área expositiva – e na incorporeidade, muito para lá do que se vê. E isso faz-se com pessoas e instituições da comunidade.

Acreditamos que o acesso a programas artísticos, como os que aqui se apresentaram, pode ser motor de espaços de liberdade de pensamento e de criação conjunta, onde não há verticalidades de conhecimento e de cultura. E achamos que isso são momentos de verdadeira transformação nas pessoas.

Porque uma Casa é um lugar onde estamos junt_s e onde tod_s temos algo a dizer e a fazer.

Esta Casa continua a ser feita pelas mesmas paredes, telhados, janelas e portas. Mas quem por aqui passa deixa algo.

_s habitantes desta Casa, foram pessoas de todas as idades, de todos os locais e com distintas habilidades e vontades.

Neste lugar temos esse poder.

O poder de fazer as coisas e as pessoas se encontrarem.

Não devemos apenas manter estas portas abertas e esperar.

Há que ir bater a outras portas para convidar.