Editorial: Observar a vida das plantas é um prolongado acto de deslumbramento.

(Alexandre Gamela)

Da semente que germina até à flor, do eclodir do fruto até ao cair no chão e regressar à semente, os ciclos do mundo vegetal marcam o ritmo da vida no planeta.

Nas cidades onde ainda as deixam existir, o periódico vestir e despir de folhas das árvores urbanas ainda é um dos poucos sinais que temos da existência de uma certa ordem natural das coisas. Em toda a parte, as diversas fases que as plantas atravessam regem os ciclos de outras formas de vida. São centrais na definição e sustentabilidade de ecossistemas, na geografia dos terrenos, na caracterização da paisagem. Nos hábitos e nas tradições das culturas que com elas convivem.

As plantas são calendário e também registo. Nos anéis encerrados no tronco das árvores podemos encontrar dados sobre o clima de um determinado período, e adivinhamos nos desenhos dos seus ramos as direções predominantes do vento. Há uma memória nas suas folhas, no seu perfume, nas ranhuras e saliências da sua casca, no seu hábito.

Dentro do solo, onde se espalham com a violência lenta de raízes profundas, há árvores sob as árvores, ramificações que servem de sistemas de transformação de nutrientes, que lhes servem para elas e para outras espécies que delas dependem. E que, de acordo com alguns especialistas, também servem como meio de comunicação com outros indivíduos da mesma espécie, tornando inútil o exercício de se distinguir a árvore da floresta.

Assim como é inútil separar o destino do mundo vegetal do destino da Humanidade.

Foi com espírito de deslumbramento e curiosidade que se realizaram os Colóquios Simples, uma série de debates e entrevistas dedicados à Botânica, à sua História e às histórias que as plantas nos trazem, aos que trabalham com elas, e à nossa relação com a flora.

Garcia de Orta foi guia e fio condutor destes debates, ele próprio fruto e semente da árvore do conhecimento científico. A riqueza da sua obra reside na abertura à diversidade do conhecimento que explorou, sistematizou e partilhou em formato de diálogo. Quem o lê não fica apenas informado, mas participa também das suas dúvidas, na análise às preconcepções alheias e dogmas antigos enquanto nos apresenta conclusões baseadas na experiência e não na mera conjectura. É um dos pioneiros do método científico, ainda antes de ter sido postulado por Bacon 80 anos depois da publicação dos Colóquios dos Simples.

Se o seu trabalho serviu como ponto de partida para olharmos de forma diferente para as plantas e para a Ciência, na sua história pessoal vimos o contraste entre a curiosidade e a abertura ao que é diferente, e a intolerância dos dogmas. Em Goa, este português encontrou na diversidade de culturas a fonte para um conhecimento mais completo sobre as espécies que estudou, numa atitude aberta e descomplexada, apontada ao benefício comum. No seu país, a monocultura da intolerância decretava que, por serem de uma religião diferente, Garcia de Orta e a sua família fossem perseguidos pela Inquisição. Nem a morte o salvou deste desígnio. Foi desenterrado, e os seus ossos queimados, em benefício de uma ideia redutora do que é o espírito. Felizmente, sobrou a obra e o reconhecimento da sua importância, que, ainda hoje, precisam de ser devidamente estudados e valorizados, para que Orta seja mais do que uma referência toponímica no imaginário social.

Cada um dos convidados dos Colóquios partilhou as suas paixões e perspectivas, de forma aberta e generosa, com o conhecimento que surge da curiosidade pura e pelo fascínio que o mundo natural exerce sobre eles. A curiosidade que move o pensamento dos cientistas e que também deve ser também um fluxo constante na nossa vida. Ouvimos as suas histórias, desde a flor que cresce do lado de fora da janela até às espécies que habitam em obras literárias, dando-lhes realidade, fundo, textura. Aprendemos a questionar o que nos é apresentado como Ciência, mas que, na realidade, é o seu oposto, e atribuímos valor ao verdadeiro pensamento científico. Descobrimos que as plantas não são mágicas, mas têm poderes encerrados em moléculas que salvam vidas, aliviam enfermidades, abrem novas portas sobre a consciência, desvendando-se em laboratório o que o conhecimento tradicional já adivinhava.

Mais do que semear ideias, quisemos plantar questões e colher os seus frutos. Só questionando é que conhecemos mais e percebemos melhor. Mais do que partilhar conhecimento, quisemos oferecer outras formas de ver um mundo que nos rodeia, invisível para muitos, mas essencial à nossa existência.

As plantas estão por toda a parte: a espreitar pelas pedras da calçada ou em muros antigos, se os deixarmos imperturbados; nas nossas casas em vasos e no prato; em medicamentos, mesmo que seja numa versão sintética; no papel que serve para assinar empréstimos, firmar contratos, celebrar uniões, apontar ideias ou manifestar opinião. Estão nas roupas, na mobília, no ar que respiramos.

Talvez seja essa ubiquidade que faz com que a nossa visão utilitarista sobre o mundo natural nos torne cegos à sua presença. Impusemos monoculturas onde antes havia diversidade. Algumas são necessárias, mas não devem ser a norma. Nem as vegetais nem as intelectuais. Uma floresta é um ambiente diverso, repleto de vida. A monocultura, seja de que tipo for, traz um silêncio que até os pássaros deixam de habitar.

Talvez seja necessário lembrarmo-nos que o tempo das plantas é muito diferente do nosso, embora as tenhamos forçado ao tempo das colheitas ou à idade para abate.

Reservem um momento para apreciar as ideias desta edição, são fruto do trabalho, inteligência e curiosidade dos nossos convidados aos quais agradeço a sua generosidade e participação nos Colóquios. A eles e a todos que participaram na organização e nos debates, o meu obrigado. Foi um prazer partilhar esta experiência convosco.

Vivemos num estado de urgência artificial, que nos engole os dias e a nossa disponibilidade para o deslumbramento. Mas, em toda a parte, há flores a abrir-se para o mundo, sem que nos apercebamos da vagarosa mecânica das suas pétalas, da química secreta do seu perfume. Entreguem-se a esse tempo—ao tempo das flores—e deslumbrem-se.

(Alexandre Gamela)

Moderador dos Colóquios Simples,
comunicador de Ciência e copywriter.