Antero de Quental e os irmãos Sampaio.

(Emília Nóvoa Faria
+ António Martins)

Introdução

Em 23 de Junho de 2023, no espaço In Memoriam Alberto Sampaio, da Loja Oficina, contigua à Casa Alberto Sampaio, em Guimarães, foi inaugurada publicamente a Exposição “Que Te Parece a Impiedade?” Antero e os Sampaio, em homenagem a duas destacadas figuras vimaranenses da centúria de oitocentos, Alberto e José Sampaio, tendo como pano de fundo a celebração da grande amizade que os uniu ao poeta e filósofo açoriano Antero de Quental. A escolha do título da exposição pela entidade organizadora, tanto quanto se pode apurar na correspondência trocada entre Antero e Alberto Sampaio, ter-se-á prendido com o conteúdo de uma carta, remetida de Lisboa, que o poeta endereçou ao seu amigo, em 22 de Abril de 1875, escassos dias após o seu 33.º aniversário, carta essa onde, por se encontrar doente e para se «vingar do destino» (Faria & Martins 2008:261), segundo os termos em que exprime o seu estado de alma, incluiu o poema “Epigrama Transcendente” que transcrevemos a seguir:

 

Quem vos fez, céu profundo e luminoso,
Terra fecunda, poderoso oceano,
E a ti deu vida, coração humano,
Que és todo um céu e um mar misterioso,

 

Bem sabia que o céu, o mar, a terra,
Tinham de ser só cárcere e geena,
Que havia a vida de ser só luta e pena,
E campo, o coração de eterna guerra.

 

Por isso o estranho artífice sombrio,
Que, concebendo o plano da obra ingente,
Irónico talvez, talvez demente,
Logo se arrependeu e o confundiu,

 

Não deu seu nome, como o arconte epónimo,
À obra de sua mente e sua mão:
O Criador furtou-se à Criação…
E, sendo um mau autor, guardou o anónimo.

 

No final, o poeta, invocando o seu próprio sentimento, remata a carta, interpelando o amigo: «Que te parece a impiedade?». Nunca chegaremos a saber qual a resposta que Alberto Sampaio lhe terá dado, porque Antero não costumava guardar a correspondência. Mas hoje, passados quase 150 anos, volta a ser a nós, homens e mulheres do século XXI, a quem o poeta, tragicamente desaparecido no ocaso do século XIX, volta a interrogar ao entrarmos na sala da Loja Oficina onde a exposição está patente ao público.

A estreita amizade do poeta açoriano com os irmãos Sampaio, iniciada no ano de 1858 e abruptamente interrompida com o seu suicídio em 11 de Setembro de 1891, constitui, pois, o motivo principal desta exposição onde se abordam os lugares por onde andaram, marcados por muitas histórias de vida, as cumplicidades que os irmanavam em momentos singulares dos seus percursos e os escritos de Antero, cujo despontar os irmãos Sampaio testemunharam nos idos da década de 50, em plena centúria de oitocentos.

(Fig. 1)

Alberto Sampaio, Antero de Quental e José Sampaio.

Lugares, Cumplicidades e Escritos

José e Alberto Sampaio, nascidos ambos em 1841 e separados por nove meses de diferença, eram pouco mais velhos do que Antero de Quental, na altura ainda com 16 anos, quando se matricularam no 1.º ano do curso de Direito na Universidade de Coimbra, em 1858. O relacionamento entre os três ocorreu a muito breve prazo. Em Abril de 1859, já Antero aparece associado ao grupo de estudantes, onde se integravam os irmãos Sampaio, implicado na praxe ao morgado de Andorinha, de que resultou a condenação de vários dos seus membros pelo Conselho de Decanos. Entretanto, já o jovem Antero não havia demorado muito a preterir a companhia do tio com quem vivia, para se alojar na casa onde moravam os seus amigos Sampaio, juntamente com Frederico Filemon Avelino e Eduardo de Almeida Andrade.

Nessa época, vivia-se na Lusa Atenas um ambiente de «permanente rebelião» (Queirós 1896:489). Os ecos dos movimentos de modernidade que se espalhavam pela Europa chegavam a Coimbra numa tumultuosa onda de novidades, levando muitos dos «rapazes o menos preparados para a receberem» a aderirem a essa «corrente revolucionária» (Sampaio 1896:10). Os grandes temas que na época dominavam a opinião pública lá por fora—filosóficos, literários, históricos, religiosos, económicos, sociais—, despertavam no meio académico, muito mais do que as «lições oficiais», a atenção e o empenho de uma juventude apaixonada, incutindo-lhe o alento necessário para se insurgir contra o imobilismo anacrónico que se instalara no país, fechado sobre si próprio, e lutar por reformas urgentes numa universidade envelhecida e refém do passado.

É neste contexto que surge a Sociedade do Raio, uma sociedade secreta de estudantes, formada com a finalidade de «combater por todos os meios o despotismo universitário […] e empenhar todas as forças na reforma» (Martins & Faria 2014-2016:258) da universidade, despotismo que o reitor Basílio Alberto de Sousa Pinto personificava, uma figura malquista no meio académico pela excessiva severidade como se relacionava com os estudantes a quem impunha normas de conduta anquilosadas e uma disciplina férrea, quando não discricionária. Na génese da Sociedade do Raio esteve o jovem José Sampaio, expulso por dois anos da Universidade, por ser considerado o principal responsável do episódio da praxe ao morgado de Andorinha. Um castigo demasiado duro sobre o qual o reitor daria, ainda, parecer negativo relativamente a um recurso apresentado ao Ministério Público para redução do tempo a que tinha sido condenado. Quando voltou a Coimbra, em Setembro de 1861, depois de cumprida a pena a que fora sujeito, tiveram então início as primeiras diligências que deram corpo à constituição daquela sociedade.

(Fig. 2)

Pátio da Universidade de Coimbra c. 1869. Fotografia de J. Laurent.

A Antero de Quental, também membro fundador e, a par com José Sampaio, grande impulsionador do movimento do Raio, esteve reservado o papel de ideólogo e de porta voz dos estudantes nele congregados. Em 22 de Outubro de 1862, foi na qualidade de presidente da deputação dos estudantes já com larga filiação na Sociedade, que saudou, no Teatro Académico, o príncipe Humberto de Saboia, filho do rei de Itália, Vítor Emanuel II, de visita à cidade. No seu discurso é significativo o passo em que refere, «à mocidade portuguesa não lhe sofre […] o espírito impaciente, ainda que opresso por um fantasma do passado» (Braga 1902:490), numa alusão directa ao reitor Sousa Pinto, «agravada ainda pelo gesto de Antero ao apontar para ele» (Brandão 1974:192). Em Dezembro do mesmo ano, saiu da sua pena o Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra—À Opinião Ilustrada do País (1862-1863), um interessantíssimo documento (Fig. 3) que serviu para apresentar, junto da opinião pública, os factos ocorridos durante a cerimónia de distribuição de prémios aos melhores alunos do ano transacto, na presença do reitor e de todo o aparato académico, e reiterar, por parte dos estudantes, o propósito de mudar o statu quo vigente e de fazerem ouvir as suas reivindicações. Os acontecimentos reportavam-se ao dia 8 de Dezembro de 1862 quando, encontrando-se a Sala dos Capelos «completamente cheia de académicos e […] ia o reitor sr. Visconde de S. Jerónimo [Sousa Pinto] para proferir o discurso de estilo», os estudantes cerraram fileiras e «saíram todos em tropel pela porta fora, deixando a grande sala completamente vazia, ficando apenas o corpo catedrático, os empregados e os estudantes premiados dentro da teia.» (Carvalho 1868:267). À saída, no terreiro da Universidade, os estudantes «deram vivas à independência, vivas à liberdade, mas não tumultuaram, não se revolucionaram, não deram morras, não pediram a cabeça de ninguém» (Martins & Faria 2014-2016:253). Certo é que a demonstração de força e de união da Academia conduziria em breve ao pedido de exoneração do cargo de reitor de Sousa Pinto.

(Fig. 3)

Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra 1862-1863 à Opinião Ilustrada do País. Fundo Alberto Sampaio, Arquivo Municipal Alberto Sampaio.

Entre Maio de 1863 e Junho de 1865, os três jovens, Alberto, Antero e José, concluíram o bacharelato em Direito e abalaram de Coimbra, prontos para as primeiras incursões no mercado de trabalho. Os encontros eram agora menos frequentes; no entanto, a correspondência amiúde trocada entre eles, permitia-lhes manterem-se ao corrente do que de mais importante se passava na vida quotidiana de cada um. Por vezes, o destino juntava-os de novo, como aconteceu em 1866, quando Alberto Sampaio se instalou na mesma hospedaria onde residia Antero, em Lisboa, decidido a montar banca de advogado na capital. Contudo, o esmorecimento do entusiasmo manifestado nos primeiros meses e a dificuldade sentida em se integrar na vida cosmopolita da grande urbe, rapidamente o fariam recuar na intenção de fazer carreira na advocacia, acabando por regressar, desiludido, ao seu Minho natal.

Idêntica contrariedade teve-a também o amigo açoriano. Após um curto período de aprendizagem da arte tipográfica na Imprensa Nacional, rumou a Paris, em finais desse mesmo ano, animado pela vontade de conhecer no terreno operário a profissão de tipógrafo, na esteira, aliás, do que haviam feito, noutro tempo, Proudhon e Michelet, dois grandes pensadores da cultura oitocentista francesa, cujas obras tiveram um forte impacto na formação intelectual do grupo de Coimbra do qual Antero e os irmãos Sampaio fizeram parte. A firme disposição com que ia animado de «encarar de frente a vida» (Faria & Martins 2008:234) na véspera de embarcar para França, depressa cedeu para dar lugar ao desalento de um idealismo inconsequente confrontado com a dura realidade. Em finais de Dezembro de 1866, decorrido pouco mais de um mês de se iniciar no trabalho de tipógrafo, confidenciava ao amigo de todas as horas: «Este trabalho é triste como todo o trabalho moderno, forçado, partido e dividido, desnatural e injusto. Para o sofrer é necessário ter em vista outra coisa, essa justa, ou as afeições da família ou o fanatismo nobre das ideias de que se é apóstolo. Ora o meu estado é este, que crendo e amando do coração os princípios e as ideias que mais que nunca me consolam, nem por isso posso na contemplação e estudo delas esquecer os impulsos da natureza. Essa pede-me paz, esquecimento, trabalho harmónico e silêncio. Como achar isto aqui?» (Faria & Martins 2008:235). Sem saber como explicar à família o insucesso do seu projecto de vida em Paris, tanto mais porque a convencera de que tinha conseguido um «óptimo emprego (piedosa mas não desonesta mentira!)» (Faria & Martins 2008:236), a solução passava, agora, por procurar guarida, pelo menos durante um ano, no «lar rústico» da Quinta de Boamense (Fig. 4), propriedade dos amigos José e Alberto, ou alugar uma «casa humilde» próxima da deles, em Guimarães, até se sentir em condições de «aparecer aos meus desassombradamente» (Faria & Martins 2008:237). Perante o cenário de inadaptação e frustração traçado por Antero, de imediato, José e Alberto trataram de procurar um sítio onde pudesse recuperar da «excitação nervosa [que] tinha atingido o seu limite máximo» (Sampaio 1896:18). Na Quinta de Santa Ana, situada na encosta da Penha da cidade berço, nas imediações do mosteiro da Costa da Ordem de S. Jerónimo, «aí no silêncio e retiro do campo, a nevrose cedeu, mitigada pela imensa paz dessa residência solitária» (Sampaio 1896:18) e, não menos importante, pela reconfortante companhia dos seus bons companheiros de Coimbra.

(Fig. 4)

Casa de Boamense.

(Fig. 5)

Mosteiro de S. Jerónimo em 2.º plano na encosta da Penha, em Guimarães.

(Fig. 3)

Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra 1862-1863 à Opinião Ilustrada do País. Fundo Alberto Sampaio, Arquivo Municipal Alberto Sampaio.

(Fig. 4)

Casa de Boamense.

Passados três meses de descanso em Guimarães, Antero retornou a Paris onde ficou a aguardar por Alberto Sampaio que decidira empreender a sua primeira viagem ao estrangeiro, em Julho de 1867, para ver a Exposição Universal, no Champs de Mars, e conhecer os «museus e galerias que são as coisas que me interessam mais» (Faria & Martins 2012:136).

Em 1875, a doença que acompanharia Antero ao longo de toda a vida, voltou a manifestar-se. Os irmãos Sampaio, de quem se lembrara assim que o seu «esculápio», Curry Cabral, lhe recomendara estanciar por uns tempos na região do Minho, foram de novo chamados em seu auxílio, para conseguirem, em Braga ou Guimarães, um quarto «em boas condições higiénicas» e um enfermeiro para lhe tratar as enfermidades, sendo, naturalmente, a hipótese de Guimarães, aquela que mais lhe agradava pelo simples motivo de poder «estar ao pé de vocês» (Faria & Martins 2008:260).

(Fig. 5)

Mosteiro de S. Jerónimo em 2.º plano na encosta da Penha, em Guimarães.

De quando em vez, lá marcavam encontro na Quinta de Boamense, o lugar de eleição onde Alberto Sampaio pontificava. Naquela paisagem tipicamente minhota, longe do bulício da cidade, bastaria o silêncio e a contemplação da natureza, propícios à meditação e à serenidade, para assegurar o bem-estar dos três amigos. Na véspera de se instalarem, segundo o testemunho de Maria Henriqueta Leal Sampaio, sobrinha de Alberto Sampaio, assistia-se à azáfama de arranjar a casa, preparar os quartos e providenciar os mantimentos suficientes para os dias de estadia. José, nessa altura já casado e a advogar em Guimarães, só tinha possibilidade de se reunir ao irmão e ao amigo no final da semana, depois de se libertar dos afazeres profissionais e familiares. Nos restantes dias, Alberto e Antero, acompanhados de um criado, «os únicos que por lá estavam», tinham os seus próprios horários, completamente desajustados da normalidade: «almoçavam às 8 horas da noite, jantavam à meia-noite e ceavam de manhã. Dormiam de dia e andavam a passear e a trabalhar de noite»! Bons tempos, a avaliar pelo excerto de uma das cartas posteriores de Antero, na qual informava o amigo de já ter recebido os «livros, e relendo a “Emilia Galloti” recordei-me com saudade das nossas plácidas noites literárias de Boamense, há 3 anos» (Faria & Martins 2008:257).

Onze anos depois de terem estado juntos em Paris, eis que voltam a embarcar no dia 5 de Junho de 1878, em Lisboa, no vapor Maria Pia, de novo com destino à cidade luz. Enquanto Antero ia consultar o famoso médico Jean-Marie Charcot, sobre o seu «mal de inquietação, melancolia e desgosto da vida» (Martins 1989:417), Alberto tencionava permanecer uns dias na capital francesa, os suficientes para visitar a terceira Exposição Universal (Fig. 6) e fazer um périplo pelos principais livreiros para adquirir livros sobre vitivinicultura, prática à qual se dedicava desde a sua primeira viagem ao país dos Bordéus e Borgonhas, em 1867, e já com resultados bem visíveis na Quinta de Boamense onde cultivava vinha e produzia vinhos de excelente qualidade.

(Fig. 6)

L’exposition de Paris.
Journal Hebdomaire.

Vitivinicultor largamente premiado e reconhecido pelos seus conhecimentos vitícolas, suportados numa sólida base científica, alicerçada no estudo e nas práticas experimentais a que se dedicava em Boamense, Alberto Sampaio conseguiu, na região do Minho, operar uma verdadeira “revolução” na arte de fazer vinhos, como, aliás, Antero não deixou de sublinhar numa carta, remetida de Vila do Conde, a agradecer mais uma remessa de garrafas do vinho de Boamense: «Do teu vinho, que já tenho libado, dir-te-ei maravilhas. […] Este teu produto prova uma coisa, e é que se os lavradores do Minho, em vez de estragarem a uva fazendo uma zurrapa de bárbaros, fizessem daquilo, podiam criar um tipo de vinho para ser muito nomeado e dar-lhes bastante interesse» (Faria & Martins 2008:304).

No início da década de 1880, Antero de Quental saiu de Lisboa para fixar residência em Vila do Conde na companhia de Teresa de Jesus Costa, mãe de Albertina e Beatriz, as filhas, ainda menores, do grande amigo do tempo de Coimbra, Germano de Meireles, que, no final de 1877, morrera vítima de um aneurisma fulminante. Perante tamanha fatalidade, o poeta propôs-se de imediato acolher e educar ambas as crianças, uma das quais, a mais velha, viria a ser apadrinhada por Alberto Sampaio. Ali, numa casa situada na Praça Velha, a dois passos do mar, gozando da proximidade de alguns dos seus melhores amigos, José e Alberto Sampaio, Lobo de Moura e Oliveira Martins, todos eles a viver a escassos quilómetros de Vila do Conde, Antero começou a sentir consideráveis melhorias na sua precária saúde, ao ponto de não lhe restarem dúvidas de que «para envelhecer em paz era proximamente disto que eu necessitava» (Faria & Martins 2008:304).

Os amigos visitavam-no amiúde, preenchendo parte do seu tempo e ajudando-o a adaptar-se a esta nova fase da sua vida. Ainda mal se tinha instalado, já decidira banir do quintal da casa as «couves e nabos» a fim de «convertê-lo numa espécie de jardim pomar, que junte o útil ao agradável, sem cair na trivialidade lamentável do potager». Quanto à «transformação filosófica do quintal do senhor Castelo», o senhorio da casa, ninguém melhor do que Alberto Sampaio para a pôr em prática. Por isso, e tendo a certeza de que o amigo nunca iria recusar um pedido seu, apressou-se a prestar-lhe, por carta, algumas informações: «O quintal é muito pequeno, com mais 4 a 6 árvores fica cheio: os muros são proporcionais ao tamanho. […] O Oliveira Martins fornece plantas de morango e umas canas ornamentais que dão plumas. Mas em nada se mexeu ainda, esperando a tua vinda, e o auxílio e conselho—Ope et consilio—de um jardineiro e em geral agrícola da tua força!» (Faria & Martins 2008:305).

Em Vila do Conde compôs os seus últimos sonetos, alguns dos quais partilhou, em primeira mão, com Alberto Sampaio: «Fiz, depois que aqui estiveste, mais um soneto que aqui vai. Não te assuste a palavra Deus. É um símbolo e ainda o melhor para exprimir uma certa coisa, que doutro feitio não caberia em verso» (Faria & Martins 2008:312)—escreve em carta remetida em Maio de 1882, na qual transcreveu o soneto “Na mão de Deus”. A felicidade que sente «no bom e único verdadeiro sentido da palavra» (Martins 1998:729), traduz-se numa força anímica para publicar a série de todos os sonetos, escritos no período de 1870 a 1885, ordenados cronologicamente de modo a «formarem uma espécie de autografia poética» (Martins 1998:730), projecto do qual se encarregou o amigo Oliveira Martins ao reunir e publicar Os Sonetos Completos de Anthero de Quental, numa edição que saiu a lume em Agosto de 1886.

Os anos dourados da década de 1880 terminaram em Outubro de 1890, quando Antero optou por ficar a viver na casa da sua irmã, em Lisboa, continuando, todavia, a deslocar-se, de quando em quando, a Vila do Conde, até Abril de 1891, altura em que decidiu encaixotar os seus pertences e sair da casa onde passou tantos e tão bons momentos na companhia das filhas de Germano Meireles e dos amigos que o visitavam. A sua ideia passava por regressar aos Açores para aí se fixar com Albertina e Beatriz, proporcionando-lhes junto da sua família as condições para completarem a sua formação e se integrarem na sociedade micaelense.

Dias antes de partir para Lisboa e fechar definitivamente as portas da casa, convidou Luís de Magalhães para um almoço de «despedida que a José e Alberto Sampaio, os seus queridíssimos amigos e companheiros de Coimbra, e a mim, ele quis dar antes do seu regresso definitivo à terra natal» (Faria & Martins 2012:277). Quando se encontraram nesse dia, longe estariam de imaginar que ali, em Vila do Conde, teria lugar a despedida para sempre do amigo que com eles crescera e os acompanhara em muitos momentos dos seus tempos de vida, desfrutando de uma amizade fraternal, na verdadeira acepção desse sentimento, construída ao longo de um percurso comum desde a sua juventude. Agora, Antero estava, finalmente, a concretizar o projecto que sonhara: no dia 8 de Junho de 1891 desembarcou na ilha de S. Miguel e, em 24 de Julho, tinha ao seu lado a irmã Ana acompanhada das duas raparigas. Nada fazia prever o terrível desfecho em que pôs termo à sua vida naquele infausto 11 de Setembro de 1891, num banco no Campo de S. Francisco.

A surpresa e o choque tomaram conta de José e Alberto Sampaio: «choraram muito pela perda do amigo. Passaram uma noite tormentosa», conta Maria Henriqueta Leal Sampaio. Quebrara-se, para sempre, o elo que os unia! A 27 desse mesmo mês, escrevia Alberto Sampaio a Luís de Magalhães: «Estava para escrever-lhe, quando recebi agora a sua carta: por si compreenderá o meu estado de espírito e a consternação em que me acho. Acabou-se o nosso bom Antero e justamente quando eu julgava que passava bem. Na última carta que recebi dele (dos fins de Julho) dizia-me que estivesse tranquilo pois já se achava no seu estado normal. Depois não tornei a ter notícias, senão esta última que me encheu de assombro e de dor. […] / Este mundo é bem triste e principalmente para mim que todos os dias me vou achando cada vez mais só. Cada amigo que desaparece leva-nos um pedaço da nossa alma, e o Antero deixa-nos um vazio imenso. Que nos resta? Unirmo-nos na nossa funda dor, como me diz na sua cartinha» (Faria & Martins 2009:162).

De entre as memórias daquele grande amigo que perduraram na vida dos dois irmãos, foi certamente Alberto o que mais profundamente guardou no fundo da sua alma o celebrado soneto que Antero lhe havia dedicado em lembrança e testemunho do sentimento fraternal que os unia:

 

A Alberto Sampaio

 

Não me fales de glória: é outro o altar
Onde queimo piedoso o meu incenso,
E, animado de fogo mais intenso,
De fé mais viva, vou sacrificar.

 

Que vale a glória, diz! p’ra se adorar
—Fumo, que sobre o abismo anda suspenso—
Que vislumbre nos dá do amor imenso?
Esse amor que venturas faz gozar?

 

Há outro, mais celeste, mais eterno,
Que, se o busco com fé, não quer fugir-me,
Nem dá, em vez de gozo, negro inferno.

 

Só esse hei-de buscar, e confundir-me
Na essência do amor, puro, sempiterno…
Quero só nesse fogo consumir-me!»

(Fig. 6)

L’exposition de Paris.
Journal Hebdomaire.

(Emília Nóvoa Faria + António Martins)
Investigadores e autores de diversos livros e artigos sobre personalidades da vida cultural nortenha.

(Bibliografia)

Braga, Teófilo (1902), História da Universidade de Coimbra. Lisboa: Tip. da Academia Real das Ciências.

Brandão, Mário (1974), Estudos vários. Coimbra: Universidade de Coimbra.

Carreiro, José Bruno (1948), Antero de Quental: subsídios para a sua biografia. Lisboa: Instituto Cultural de Ponta Delgada.

Carvalho, Joaquim Martins de (1868), Apontamentos para a história contemporânea. Coimbra: Imprensa da Universidade.

Faria, Emília Nóvoa; Martins, António (org., introd., notas) (2008), Cartas a Alberto Sampaio. Porto: Campo das Letras.

Faria, Emília Nóvoa; Martins, António (org., introd., notas) (2009), Cartas de Alberto Sampaio. Ribeirão: Húmus.

Faria, Emília Nóvoa; Martins, António (2012), Fotobiografia de Alberto Sampaio: A Paixão das Origens. Prefácio de Guilherme d’Oliveira Martins. Guimarães: Capital Europeia da Cultura.

Martins, Ana Maria de Almeida (org., introd., notas) (1989), Cartas I [1852]-1881. Antero de Quental. [Ponta Delgada]: Universidade dos Açores, 1989.

Martins, Ana Maria de Almeida (org., introd., notas) (1989), Cartas II 1881-1891. Antero de Quental. [Ponta Delgada]: Universidade dos Açores, 1989.

Martins, António; Faria, Emília Nóvoa (2014‑2016) “Alberto Sampaio em Coimbra. Da tertúlia académica à Sociedade do Raio”. Letras com Vida—Literatura, Cultura e Arte. Revista do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CLEPUL), 7, 244‑279.

Queirós, Eça de (1896), “Um génio que era um santo”, Anthero de Quental in memoriam. Porto: Mathieu Lugan, 481‑522.

Sampaio, Alberto, “Anthero de Quental (Recordações)”, Anthero de Quental in memoriam. Porto: Mathieu Lugan, 9-29.