Garcia de Orta,
um médico português do Renascimento.

(João Paulo S. Cabral)

Nascido em Castelo de Vide em inícios do século XVI, filho de pais judeus, Garcia de Orta formou-se em medicina nas prestigiadas universidades de Alcalá de Henares e de Salamanca. Por esta altura frequentavam a universidade salamanquina, Amato Lusitano (1511-1568), Andrés de Laguna (c.1510-1559), Luiz Nunes de Santarém (-1553), Juan Aguilera (-1560), Tomé Rodrigues da Veiga (1513-1579), entre outros; dos mestres, destacavam-se Elio Antonio de Nebrija (1444-1522) e Pedro Margalho (1474-1556). Regressa à sua terra natal, onde exerce clínica. Todavia, logo em 1526 vai para Lisboa, onde conhece Pedro Nunes (1502-1578) e Pedro Margalho. Na universidade da capital ensina História Natural, mas por pouco tempo, dado que em 1534 embarca para a Índia a acompanhar Martim Afonso de Sousa (1500-1564), então nomeado capitão-mor do mar das Índias e depois governador do Estado da Índia. Não mais regressará ao seu país natal. A acompanhar o seu protector viaja pela Índia, o que lhe terá dado oportunidades para conhecer ao vivo a história natural de tão vasto e desconhecido território. Em Goa cria a sua biblioteca, jardim e colecção de produtos de história natural. É médico do hospital real, onde terá conhecido Camões que escreverá alguns poemas para os Colóquios. Conquista sólida amizade de Burhan Nizam Shah I (1510-1553), o Nizamaluco, soberano com corte em Ahmadnagar, depois de ter curado o príncipe Hussein, herdeiro do trono. Em 1563 sai do prelo em Goa os Colóquios dos Simples (Fig. 1), quatro anos depois Clúsio publica em Antuérpia um resumo em latim (Fig. 2) e, em 1568, morre Orta em Goa. A Inquisição irá perseguir a família, queimando na fogueira a sua irmã e os seus próprios ossos, exumados da sepultura.

(Fig. 1)

Folha de rosto da primeira edição dos Colóquios, publicada em Goa em 1563. Fonte: gallica.bnf.fr / BnF.

Muitas hipóteses têm sido colocadas sobre a vida de Garcia de Orta, mas faltam-nos documentos para as discutir historicamente. Restam-nos os Colóquios, um desafio de leitura da sua versão original, manancial riquíssimo, quase inesgotável, de informações de variada natureza, incluindo a científica, mas que não nos dá respostas para muitas questões, como a razão de ter ido para Goa e a sua filiação religiosa.

(Fig. 2)

Folha de rosto da versão latina resumida dos Colóquios, feita por Clúsio e publicada em 1566, com o título Aromatum et slimplicium aliquot medicamentorum apud indos nascentium historia.

Neste curto texto irei apresentar alguns dos resultados das minhas investigações sobre a vida e obra de Orta. No final apresento algumas recomendações bibliográficas onde podem encontrar uma fundamentação detalhada das minhas ideias, assim como algumas obras de outros autores.

 

Expedições na Índia a acompanhar Martim Afonso de Sousa

Martim Afonso de Sousa realizou várias expedições militares tendo sido acompanhado, em algumas destas, por Garcia de Orta. A sua primeira referência temporal diz respeito à campanha levada a cabo em finais de 1535, no norte da Índia, a pedido do sultão de Guzarate Badur Xá. A expedição militar atravessou toda a península de Kathiawar desde Diu até às portas de Amedabade. Orta afirma nos Colóquios que acompanhou o seu patrono e até teve de intervir como médico para tratar Martim Afonso e o governador da fortaleza de Diu. Logo no ano seguinte, 1536, Martim Afonso de Sousa ataca, a pedido do rei de Cochim, a ilha de Repelim, no sul da Índia. Nos Colóquios, Orta afirma ter estado presente. Dois anos mais tarde, em 1538, Martim Afonso intervém em Beadala (Vedalai), porto situado na língua de terra que se estende da costa sul da Índia em direcção a Ceilão (limitando o golfo de Manaar pelo norte). Se bem que Orta tivesse podido acompanhar esta expedição, não o afirma nos Colóquios. Existe ainda nos Colóquios mais uma referência de Orta a acompanhar Martim Afonso de Sousa, que terá ocorrido em 1543, na ilha das Vacas (ilha de Delft, hoje integrada no Sri Lanka, situada na baía de Palk). No colóquio Da pedra bezoar, Orta afirma ter estado na ilha das Vacas.

 

A importância dos Colóquios no contexto da botânica do século XVI

A quantidade de informação que Garcia de Orta incorpora nos Colóquios é imensa, tanto em termos de observações pessoais como de informações secundárias obtidas de outras pessoas e da bibliografia. A bibliografia citada e seguramente lida, é vastíssima. Cita obras publicadas por contemporâneos, algumas editadas pouco tempo antes da impressão dos seus Colóquios. Um dos autores mais citados é Andrés de Laguna (1499-1559), que também tinha frequentado a Universidade de Salamanca. Garcia de Orta estava certamente a referir-se à edição e comentários da obra de Dioscórides feita por Laguna e publicada em latim em Lião (França), em 1554, ou a edição em espanhol datada de 1555 e publicada em Antuérpia.

Outras fontes informativas para Orta foram, como ele próprio revela, mercadores, intelectuais, boticários, alguns médicos, as elites goesas e de outros reinos.

As plantas e os produtos vegetais que Orta estuda eram objecto de intenso e valioso comércio entre o Oriente e o Ocidente. Orta revela conhecer bem as rotas comerciais por onde circulavam as diferentes mercadorias, informações facultadas pelo contacto com os próprios mercadores, com comerciantes ou homens do mar.

Carlos Clúsio (1525-1609), acompanhado de dois filhos do banqueiro Anton Fugger (1493-1560), percorreu a Península Ibérica em 1564-1565. Em Portugal, explorou a Aldeia Galega, Coimbra, Évora, Lisboa, Montemor-o-Novo, Serpa, Sintra, Tomar e o Alentejo. As observações que fez na Península Ibérica seriam publicadas em Rariorum aliquot stirpium per Hispanias observatorum historia (1576), trabalho importante com muitas novidades sobre as plantas ibéricas, então muito mal conhecidas do centro e norte da Europa, a sede do avanço da ciência botânica. Terá sido em Lisboa que Clúsio toma conhecimento dos Colóquios de Orta, publicados há pouco em Goa. Sintetiza a obra num texto em latim—Aromatum et simplicium aliquot medicamentorum apud Indos nascentium historia, que publica em Antuérpia na casa Plantin em 1567 (Fig. 2). Por que razão empreende Clúsio a redacção e publicação deste resumo da obra de Orta? Porque continha as descrições de várias dezenas (cerca de metade do total) de plantas desconhecidas na Europa, e a novidade é muito importante em ciência…

 

O «misterioso» coco das Maldivas

Orta descreverá nos Colóquios plantas e produtos vegetais que nenhuma obra impressa antes tinha referido ou descrito. Algumas destas novidades são muito sumariamente apresentadas por Orta, apenas em algumas linhas. Todavia, outras são pormenorizadamente descritas. Uma destas novidades era o «enigmático» coco das Maldivas, enorme fruto que surgia nas praias daquele arquipélago.

No Colóquio 16, Orta descreve correctamente a morfologia do fruto, a polpa fresca e seca, as supostas propriedades anti-veneno do fruto e refere a lenda segundo a qual, em tempos idos, as ilhas das Maldivas tinham sido em parte submersas e as palmeiras que davam estes cocos ficado dentro do mar.

Este coco era valioso porque era raríssimo, sobretudo quando comparado com o coco vulgar. Na realidade estes coqueiros eram endémicos das ilhas Seicheles. Não existiam em outros lugares. Os cocos acabavam por ser transportados pelas correntes oceânicas e chegavam às praias das ilhas Maldivas, daí o nome que os portugueses lhes deram. As ilhas Seicheles ficavam fora das rotas habituais da navegação desta época, mas eram conhecidas, pelo menos à distância, dado que parecem figurar em muitas cartas do século XVI, nomeadamente na de Cantino. A primeira descrição de quem viu ao vivo o coqueiro das Seicheles só seria feita em 1776 pelo naturalista francês Pierre Sonnerat (1748-1814), portanto mais de dois séculos depois da obra de Garcia de Orta (Fig. 3).

(Fig. 3)

O coqueiro das Seicheles (Lodoicea maldivica (J.F.Gmel.) Pers.), à esquerda, e o caroço do coco das Seicheles, à direita. Desenhos publicados por Pierre Sonnerat na sua obra Voyage à la Nouvelle Guinée, publicada em 1776. Notar que os cocos inteiros têm uma forma oval. O caroço que se encontra no seu interior tem uma forma bilobada.

(Fig. 2)

Folha de rosto da versão latina resumida dos Colóquios, feita por Clúsio e publicada em 1566, com o título Aromatum et slimplicium aliquot medicamentorum apud indos nascentium historia.

Sabemos que os caroços de cocos das Maldivas, simples ou montados em metais preciosos, ingressavam nas colecções de raridades e preciosidades dos monarcas, príncipes, nobres e grandes comerciantes europeus. Clúsio, em Exoticorum libri decem, publicado em 1605, apresenta um desenho de uma destas peças (Fig. 4).

(Fig. 4)

Desenho de peça de ourivesaria feita com parte de um caroço de coco das Seicheles, inserida por Clúsio na sua obra Exoticorum libri decem, publicada em 1605.

O infante D. Duarte de Portugal, 5.° Duque de Guimarães (1541-1576), condestável do reino, possuía quando morre, uma colecção de raridades, instrumentos científicos, pinturas e outras obras artísticas, e uma notável biblioteca. O seu testamento, datado de 9 de Novembro de 1576 (Caetano de Sousa, 1742, Provas da Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Tomo II, pp. 620-642), é um documento de valor excepcional para se conhecer os gostos e as posses de um membro da casa real. Dos objectos preciosos e exóticos encontramos referência a «dois cocos de Maldiva pegado um ao outro», afinal o caroço de um fruto de tão preciosa raridade.

Seria, todavia, na poderosíssima dinastia dos Habsburgo que as preciosidades montadas em cocos das Maldivas conheceriam o seu esplendor máximo. O arquiduque Fernando II (1529-1595), monarca do Tirol e da Áustria, foi um dos grandes colecionadores da Casa de Áustria e o fundador dos museus de Ambras. A Kunstkammer (Gabinete de Curiosidades) de Ambras ocupava uma sala ampla. Desta colecção foi feito um primeiro inventário em 1596, após a morte de Fernando II, e um segundo em 1621. No âmbito da história natural, muitas peças eram objectos transformados e montados como um recipiente feito a partir de um caroço de um coco das Seicheles. Com o imperador Rudolfo II (1552-1612) o coleccionismo de objectos artísticos e de história natural atinge um clímax no contexto europeu. Consagrado imperador do Sacro Império Romano-Germânico em 1576, muda a corte imperial para Praga. Daniel Fröschl (1563-1613), antiquário imperial, fez um inventário da grande colecção de Rudolfo II, trabalho que decorreu entre 1607 e 1611. Dos objectos de história natural da colecção destacavam-se cocos naturais e decorados, sendo um ou dois exemplares de coco das Seicheles. Uma destas peças de ourivesaria tem uma parte do caroço do coco, montado com prata dourada, formando uma taça.

Em 1599, por ocasião do casamento de Filipe III de Espanha (1578-1621) com a arquiduquesa Margarida de Áustria-Estíria (1584-1611), em Barcelona, o rei ofereceu inúmeros presentes à mãe da noiva, Maria Ana de Baviera (1551-1608), viúva de Carlos II da Estíria. Destes presentes destacavam-se centenas de pedras bezoares orientais, conchas, trabalhos em madrepérola e 20 cocos das Seicheles.

(Fig. 5)

Peça de ourivesaria feita em 1602 em Praga, com parte de um caroço de coco das Seicheles, do ourives Anton Schweinberger (1550-1603) e do gravador Nikolaus Pfaff (c.1556-1612), que se encontra no Kunsthistorisches Museum de Viena.

(Fig. 4)

Desenho de peça de ourivesaria feita com parte de um caroço de coco das Seicheles, inserida por Clúsio na sua obra Exoticorum libri decem, publicada em 1605.

A absoluta raridade dos cocos das Seicheles nos séculos XVI e XVII é bem representada pelo reduzidíssimo número de exemplares que chegaram até os nossos dias. O exemplar montado com metais preciosos que se encontra hoje no Kunsthistorisches Museum de Viena é uma taça do ourives Anton Schweinberger (1550-1603) e do gravador Nikolaus Pfaff (c.1556-1612) feita em 1602 em Praga (Fig. 5). Tem a assinatura do artista. O espécime de coco montado em prata que se encontra hoje no Staatliche Kunstsammlungen de Dresden tem um interesse excepcional, dado ser atribuído a confecção portuguesa, datada da década de 1570. Esta taça terá sido trazida do oriente na década de 1570, por comerciantes portugueses (Fig. 6). No museu da universidade de Uppsala encontra-se uma peça de grande valor—uma estante coroada por um conjunto de objectos naturais, encontrando-se no topo uma taça baseada num pedaço de um caroço de coco das Seicheles, ornamentada com prata. Peça criada por Philipp Hainhofer (1578-1647) foi dada como presente ao rei da Suécia Gustavo II Adolfo (1594-1632), depois da sua conquista e saque da cidade de Augsburgo a 24 de Abril de 1632. A taça é suportada pelo deus Neptuno.

(Fig. 6)

Peça de ourivesaria com parte de um caroço de coco das Seicheles montado em prata, possivelmente de confecção portuguesa, trazida do oriente na década de 1570 por comerciantes portugueses, que se encontra no Staatliche Kunstsammlungen de Dresden.

Todas as peças que hoje existem são recipientes para líquidos, geralmente em forma de taças alongadas. Qual a razão para tão constante tipologia nestas peças de ourivesaria feitas com cocos das Maldivas? Uma explicação muito provável encontra-se no trabalho clássico de Pierre Sonnerat, Voyage a la Nouvelle Guinnée, 1776. Sonnerat refere, incrédulo, as propriedades medicinais deste coco indicando uma interessante prática dos «grandes senhores do Indostão»: «ainda compram este fruto a altos preços; fazem do coco taças, que enriquecem com ouro e diamantes; só bebem por estas taças, persuadidos que o veneno, que muito temem, porque eles próprios muito usam, não os prejudicará, por mais activo que seja, quando a sua bebida for derramada e purificada nestas taças salutares». Aparentemente estas crenças duraram muito tempo.

Como obteve Garcia de Orta o exemplar de coco das Maldivas (Seicheles) que descreve e as informações que detalha no colóquio dezasseis?

Pelo seu posicionamento geográfico, as ilhas das Maldivas eram pontos estratégicos do comércio do Índico. Eram, desde o século XII, ocupadas por povos muçulmanos. Os mercadores muçulmanos que regressavam do Índico oriental, nomeadamente de Pegu, para alcançarem o Índico ocidental usavam duas vias diferentes, uma das quais passava a sul de Ceilão e chegava às Maldivas, onde esperavam por condições meteorológicas favoráveis. Das Maldivas dirigiam-se directamente para os portos de entrada do Mar Vermelho. Quando os portos do Malabar foram ocupados ou vigiados pelos navios portugueses, os mercadores muçulmanos passaram a usar preferencialmente a rota que passava a sul de Ceilão e faziam escala nas Maldivas.

A armada que partiu para a Índia em 1518 era capitaneada pelo novo governador Diogo Lopes de Sequeira (1465-1530). João Gomes é enviado às Maldivas para construir um fortim. Leva consigo uma frota com mais de uma centena de homens. Inicialmente é bem recebido pelo sultão e constrói um fortim em madeira. João Gomes e os seus homens terão abusado da hospitalidade dos muçulmanos e o rei local pede então auxílio a Calecute, ao corsário Patemarcar. Em Setembro ou Outubro de 1519, Patemarcar, comandando doze fustas equipadas com artilharia, ataca o fortim ao alvorecer destruindo-o assim como a frota portuguesa que se encontrava ancorada. Todos os portugueses morreram às mãos de muçulmanos.

Nos inícios da década de 1520, as Maldivas e os seus acessos estavam controladas por muçulmanos. As ilhas eram grandes produtoras de cairo, indispensável para o fabrico do cordoame e, portanto, para a navegação, pelo que o então governador Vasco da Gama (1469-1524) decide actuar. Envia para as Maldivas um esquadrão comandado por Simão Sodré com o objectivo de libertar o acesso ao arquipélago. A operação tem êxito e logo duas embarcações carregam cairo para transportar para Cochim. A frota de Simão Sodré permanece no arquipélago durante a monção de 1525.

Algumas décadas depois, em 1552, o sultão das Maldivas vai a Cochim e converte-se ao cristianismo. Tenta impor aos seus súbditos a nova religião, ameaçando com a intervenção das armas portuguesas, o que aconteceria em duas ocasiões. De facto, em 1553 os portugueses controlam pelas armas o arquipélago, constroem um forte na ilha de Malé, e têm o domínio do comércio. O controlo português das Maldivas terá durado cerca de uma década. Emerge depois uma rebelião de dois líderes locais, que durou vários anos. Os dois líderes locais estabelecem-se como reis das Maldivas. Ao fim de alguns anos de escaramuças entre as forças portuguesas e as locais, os dois líderes muçulmanos das Maldivas chegam a um entendimento com os portugueses e com o rei cristão deposto. De acordo com o relato de François Pyrad de Laval (c.1578-c.1623), os dois líderes muçulmanos reinaram juntos durante 25 anos.

Estes breves dados históricos mostram assim que durante uma parte do século XVI a influência portuguesa nas Maldivas foi assinalável, tendo mesmo existido durante algum tempo controlo militar e comercial do arquipélago. Sendo Goa o epicentro do Estado da Índia, não terá sido difícil a Garcia de Orta obter exemplares do coco das Maldivas.

 

As contradições de um homem do Renascimento

No século XVI os académicos alemães lideravam a renovação dos estudos botânicos. Otho Brunfels (ca. 1489-1534), Jerome Bock (1498-1554, latinizado como Hieronymus Tragus), Leonhardt (Leonardo) Fuchs (1501-1566), Adam Lonicerus (1501-1566) e Valerius (Valério) Cordus (1515-1544), desenvolvem estudos e práticas de medicina, farmácia, matéria médica e botânica no domínio privado, municipal, institucional ou universitário, em particular em Vitemberga e em Tubinga. Seguindo percursos diversos, vários destes mestres aderiram ao protestantismo, em particular Brunfels, Bock e Fuchs, e esta atitude, especialmente de quem abandona a fé católica para abraçar outro credo, será escrutinada pela Inquisição portuguesa que colocará no Index muitas das suas obras, deixando, todavia, de fora, as ligadas estritamente à botânica e à matéria médica.

É no contexto da matéria médica e da história natural indiana, que o trajecto de Garcia de Orta se cruza com o dos mestres alemães.

As obras de Valério Cordus são referidas em vários colóquios, sobre o cardamomo, a cássia e o cinamomo (a canela), e os tamarindos, as tâmaras-da-Índia.

Também Leonardo Fuchs é mencionado por Garcia de Orta nos seus Colóquios. Perante o mestre alemão a atitude de Orta é parcial e injusta. A primeira referência que encontramos é no colóquio 50 dedicado ao espiquenardo, uma planta espontânea no norte montanhoso da Índia cujo rizoma era usado como medicamento desde tempos remotos. É perto do final da obra, no colóquio 58, que compreendemos o pensamento do médico português. A «confissão» moral e religiosa de Orta vem no seguimento da uma referência ao marfim. Segundo Orta, Fuchs «homem douto, diz que não ha marfim verdadeiro no mundo» (ed. Ficalho, p. 379). Ora, o que Fuchs realmente escreveu não foi isto. As suas palavras têm de ser analisadas no seu contexto e a descrição do mestre alemão simplesmente nos informava que o marfim era tão procurado que se tinha tornado muito caro e difícil de obter, dando lugar às habituais falsificações: «O marfim (os dentes de elefante), como é muito procurado em tantas circunstâncias, hoje tornou-se também muito caro. Por isso marfim verdadeiro é quase impossível de encontrar em parte alguma. Na verdade, o que costuma estar à venda nas lojas em sua vez, ao que parece, são dentes de peixes do mar. Marginalia: No mercado não se encontra marfim genuíno» (Operum Leonharti Fuchsii, Tomus Primus, Francofurti ad Moenum, 1561, p. 61).

Desde o século XV, que o marfim de melhor qualidade, obtido a partir dos dentes do elefante africano, principalmente da África equatorial ocidental, chegava à Europa em peças trabalhadas por artesãos africanos e trazidas por portugueses, ou na sua forma bruta. Este comércio adquiriu expressão significativa no século XVI, e sobretudo no seguinte, protagonizado inicialmente pelos portugueses. Uma grande panóplia de obras de arte, feitas total ou parcialmente com marfim, como olifantes, píxides, colheres, saleiros, cofres e escritórios vendiam-se, a preços muito elevados, na Rua Nova dos Mercadores em Lisboa e em outras cidades europeias. Permaneceram sempre como objectos de luxo, caros e difíceis de obter, só acessíveis a algumas das elites europeias—estavam presentes em colecções da nobreza portuguesa e espanhola, e em Gabinetes de Curiosidades (Kunstkammer) das elites europeias. Por outro lado, o marfim bruto era usado na confecção de peças de carácter religioso. A arte europeia do marfim atingiu o seu florescimento máximo no Gótico final —1475-1550. A Reforma irá causar não só uma destruição em grande escala das imagens e esculturas, como uma diminuição drástica das encomendas de peças religiosas em marfim. Continuaram a ser feitas peças para uso privado, sobretudo por artistas com ligações a Itália, mas em escala muito inferior.

(Fig. 7)

O elefante, em desenho inserido na Historiae Animalium Lib. I, de Conrad Gesner, publicada em 1551. Fonte: nlm.nih.gov/ NLM.

(Fig. 6)

Peça de ourivesaria com parte de um caroço de coco das Seicheles montado em prata, possivelmente de confecção portuguesa, trazida do oriente na década de 1570 por comerciantes portugueses, que se encontra no Staatliche Kunstsammlungen de Dresden.

Não só o marfim era bem conhecido na Europa, como o próprio elefante, através de múltiplas representações como descrições escritas, com destaque para as de Conrad Gesner (Fig. 7), mas também pela presença de animais vivos que, depois da abertura do caminho marítimo para Oriente pelos portugueses, tinham sido trazidos da Índia para a Europa, em número considerável. Durante o século XVI pensa-se que cerca de 13 elefantes asiáticos foram trazidos para a Europa via Portugal. Desde Lisboa até ao seu destino, os elefantes foram vistos por espanhóis, italianos, flamengos e alemães durante as paragens que fizeram ao longo do seu percurso, nomeadamente em cidades como Alicante, Génova, Milão, Antuérpia, Colónia. Por onde passaram estimularam a curiosidade de artistas, naturalistas, humanistas e do simples povo. Perante a observação directa, os naturalistas puderam comparar as descrições dos mestres da Antiguidade com a evidência real.

Ora, um académico como Fuchs dificilmente desconheceria estas novidades para afirmar que não existia o marfim verdadeiro!

Garcia de Orta designa as palavras de Fuchs como «mentiras tão grossas» que nem mereciam ser repreendidas. Mas afinal o problema de Fuchs era ser um «hereje condenado por luterano». Orta confessa que por Fuchs ser luterano «me vieram a avorrecer suas obras». Fuchs tinha sido «muyto desenvorgonhado em dizer que nao avia marfim verdadeiro», interpretação de Orta que já demonstrámos ser incorreta. A última frase de Orta a este propósito, cristaliza o que o conde de Ficalho, responsável pela edição moderna, qualificou muito benignamente de «uma certa intolerancia religiosa»: «Parece que os Luteranos devem ter no inferno algum marfim, que seja guardado para elles» (ed. Ficalho, p. 380).

A propósito do ideário religioso de Orta têm sido emitidas várias opiniões, ora identificando-o como adepto do judaísmo, ora dentro da fé católica. Foram precisamente os ataques lançados contra L. Fuchs um dos argumentos apresentados para concluir da ligação de Orta ao catolicismo, sabendo que muitos católicos nutriam especial ódio pelos protestantes. Por outro lado, os violentos ataques lançados por Martinho Lutero contra o judaísmo, cristalizados em várias obras suas, poderão ter desencadeado reacções de académicos judeus, e seria neste contexto que se poderiam enquadrar as palavras de Orta contra Fuchs, ou então pretendia Orta apresentar-se como ultra-católico convicto, de forma a dissimular da Inquisição o seu judaísmo. Jean Delumeau caracterizava o Renascimento como «um oceano de contradições, um concerto por vezes estridente de aspirações divergentes, uma difícil concomitância da vontade de poderio e de uma ciência ainda balbuciante, do desejo de beleza e de um apetite malsão pelo horrível, uma mistura de simplicidade e de complicações, de pureza e de sensualidade, de caridade e de ódio» (A civilização do Renascimento, Volume I, 1984, p. 22). Garcia de Orta, um homem assumido do Renascimento que logo no primeiro colóquio promete a Ruano que «em todas as cousas vos servirey e vos direy a verdade» e «de vos servir e dizer o pouquo que souber, e logo vos ey de dizer as cousas que sey bem sabidas e as em que tenho duvida, com juramento de falar muyta verdade» (ed. Ficalho, pp. 19-20), embarcou em questões religiosas e confessionais e deturpou, talvez deliberadamente, as palavras de académicos luteranos, tornando-se assim, como muitos outros intelectuais desse período, parte do «oceano de contradições» do qual Jean escreve Delumeau.

(João Paulo S. Cabral)

Professor universitário aposentado.

jpscabral@hotmail.com.

(Bibliografia seleccionada)

A edição original dos Colóquios de 1563 encontra-se digitalizada e acessível no sítio da Torre do Tombo. A Biblioteca Nacional de Portugal publicou uma edição fac-similada, que também está disponível em e-book. Das edições modernas destaca-se a do Conde de Ficalho em dois volumes, com muito importantes notas e comentários seus. Integrado na colecção do Círculo de Leitores Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa, foi publicada uma versão com ortografia actualizada e Introdução de Jorge Paiva.

 

Sobre Garcia de Orta e os Colóquios, apresentei comunicações ao Colóquio O Jardim de Orta: Botânica, medicina e cultura nos Colóquios de Garcia de Orta, realizado na BNP em 2013 (e publicado em livro em 2015), ao Colóquio II História das Ciências para o ensino, realizado em Coimbra em 2014 (disponível em e-book) e ao Colóquio III História das Ciências para o ensino, realizado em Coimbra em 2017 (publicado em 2021). Publiquei em 2020 um artigo na revista Advances in Historical Studies.

De outros investigadores posso referir, também do conde de Ficalho, Garcia da Orta e o seu tempo (1886), diversos trabalhos de Juan Pimentel e Isabel Soler, de Silva Carvalho um extenso trabalho publicado em 1934 na Revista da Universidade de Coimbra e de Teresa Nobre de Carvalho, vários artigos publicados em revistas e o livro Os desafios de Garcia de Orta, publicado em 2015. Daniel Gelanio Dalgado, conhecedor da botânica indiana publicou em 1894 a Classificação botanica das plantas e drogas, descriptas nos Coloquios da India de Garcia d’Orta. Para uma discussão da filiação religiosa de Orta existe um artigo publicado na revista Brotéria de 1963 de A. Martins e outro de A. da Silva Rego publicado em 1963 na revista Garcia de Orta.

 

Continua a faltar um trabalho de conjunto moderno de história da botânica que evidencie as novidades científicas contidas nos Colóquios, no contexto da sua época, trabalho que se afigura de muito grande envergadura.