Nesta “época de incêndios” reacende-se (pun intended) a lusa relação de amor-ódio com as florestas.
A rotina é já antiga. Por esta altura do ano, em todo e qualquer fórum formal ou informal se discute a irresponsabilidade do Governo ao não ter implementado mudanças significativas nas políticas florestais e do ordenamento, contam-se os danos materiais e humanos, garante-se que é matéria urgente, organiza-se um comité, culpa-se o calor, o vento e as alterações climáticas, questiona-se a eventual massificação da floresta industrial, despeja-se água sobre as fervuras coloquiais e florestais e segue-se em fogo lento até ao próximo estio.
É a época da queima do judas, em que o demonizado protagonista expia os pecados de uns e a dor de outros e ganha forma de árvore: o eucalipto.
Mas vamos aos factos. O eucalipto domina as nossas florestas: ocupa mesmo 26% de toda nossa floresta, sendo a espécie arbórea mais abundante no território continental. Ocupa cerca de 844 mil hectares e, ao longo dos últimos 50 anos, tem apresentado um aumento sistemático da área ocupada. A principal espécie que cultivamos tem o nome científico de Eucalyptus globulus e é oriunda do sudeste australiano. Portugal é um dos cinco principais países produtores de eucalipto, a par da China, do Brasil, da Austrália e da Índia (reflitamos um pouco sobre a dimensão de cada um destes países, comparando com o nosso), sendo mesmo o país com maior ocupação relativa desta espécie. Esta desproporção ecológica é superiormente justificada pelo peso da silvicultura na economia nacional. Por exemplo, em 2019, as indústrias de base florestal—que incluem a madeira, a cortiça, o mobiliário, e a pasta, cartão e papel, entre outros produtos—empregavam cerca de 100 mil pessoas, representando 2,31% do emprego nacional. Em 2016, a indústria ligada à produção de eucalipto era composta por 327 empresas (4,8% do setor florestal) e empregava 10.610 pessoas (16,1% do setor florestal). Em 2019, o conjunto das indústrias de base florestal contribuíram com 4,57% do PIB e o setor da silvicultura com 0,44% do mesmo indicador. Estas indústrias contribuem ainda para o equilíbrio da balança comercial do país, ao exportarem mais do que importam (aqui com destaque para os produtos à base de cortiça). Ainda em 2019, contabilizavam-se cerca de 7800 empresas ligadas à silvicultura e exploração florestal (menos de 1% do total das empresas portuguesas).
Qualquer setor económico com este peso tem de ser encarado com seriedade, dando-lhe a importância que deveras tem. Conhecendo-se os dados da macroeconomia, analisemos um pouco a realidade dos vários atores envolvidos. A indústria papeleira declarou lucros que, somados, ultrapassam os 294 milhões de euros de lucro em 2021. Os relatórios de contas do primeiro semestre de 2022 fazem prever para este ano o dobro do lucro do ano passado, face à evolução do mercado global. Porém, o salário médio de um trabalhador florestal cifra-se entre os 670 e os 1100 euros, brutos. A rentabilidade de um eucaliptal para um pequeno proprietário ronda, de grosso modo, os 600 a 1000 euros por hectare e por ano (número que depende de vários fatores, incluindo uma adequada aptidão dos terrenos e a gestão aplicada) e tem vindo a decrescer consideravelmente. Desconheço os argumentos que justificam superiormente esta desproporção de rentabilidade, mas estes dados devem fazer-nos refletir sobre o “real” peso da indústria para o progresso coletivo do país ou para a qualidade de vida do cidadão comum (ou mesmo do pequeno proprietário florestal).
Nenhum ecólogo, biólogo ou ambientalista minimamente consciente demoniza o eucalipto, enquanto árvore, enquanto ser vivo. Um conhecedor até admirará a espécie e todas as suas notáveis capacidades adaptativas. A demonização da espécie está ligada ao uso que dela se faz e ao decorrente desordenamento do território, cujos prejuízos, esses sim, nos tocam a todos. A sabedoria popular já nos alerta que “tudo o que é demais é moléstia”. Mas vamos aos factos ambientais.
O eucalipto é uma espécie de crescimento rápido que denota comportamento invasor e pirófito, ocupando áreas fora dos povoamentos plantados, resistindo ao fogo e beneficiando (enquanto população) da ocorrência de incêndios. Não faltam estudos que afirmam que a espécie não “arde mais do que outras” presentes na nossa floresta, mas também não faltam demonstrações de terreno em como a vegetação nativa (como uma floresta nativa mista) é capaz de travar ou mitigar a intensidade dos intensos fogos que lavram em eucaliptal. Com muito tato, vai-se explicando, por exemplo, que os compostos voláteis orgânicos segregados pelos eucaliptos aparentam ter alguma associação com o comportamento extremo e explosivo que alguns incêndios manifestam. São bem conhecidos os efeitos que o crescimento rápido dos eucaliptos tem sobre a depauperação dos solos e a dificílima recuperação da funcionalidade dos mesmos, após várias rotações e cortes. Sabe-se que os requisitos hídricos da espécie aceleram os efeitos de desertificação em áreas áridas ou semi-áridas. Foram demonstrados os efeitos negativos dos eucaliptais sobre a decomposição das folhas de árvores em ribeiros de regiões temperadas, como Portugal, o que tem naturalmente efeitos em toda a funcionalidade daqueles ecossistemas ribeirinhos. É conhecido o efeito erosivo sobre solos durante os períodos de corte, e principalmente em áreas de eucaliptal ardido. Está demonstrado o severo efeito de empobrecimento da fauna vertebrada e invertebrada em plantações de monocultura industrial, principalmente em vastas áreas contínuas, sem interrupção ou orla variada. A lista dos efeitos ecológicos deletérios confirmados continua…
É também inegável a transformação paisagística que a proliferação do eucalipto tem operado no centro-norte (e até em algumas área do sul) do país. Enquanto a floresta mista ou com elevado valor estético pode gerar dividendos da sua visitação e valorização recreativa ou turística, questiono quem é que pagaria a uma empresa de animação turística para fazer um tour pelos deslumbrantes eucaliptais de Portugal.
Não é intenção desta crónica simplificar o tema ou, mais uma vez, demonizar a referida produção industrial. Mas ao recapitular-se o conhecimento e os factos das clássicas duas “frentes” sobre a matéria, não deixa de ser curioso apreciar como a ciência e a academia se revestem de mil cuidados na exploração e comunicação destes temas melindrosos. Os dados sugerem, parecem indicar tendências, levantam questões, mas nunca têm certezas absolutas (de resto, bem de acordo com o método científico). Porém, do outro lado (e é pena que existam lados tão demarcados), não há pejo em apelar ao orgulho numa “indústria benchmark a nível europeu e mundial na produção de pasta, papel e cartão”.
Pessoalmente, reconhecendo os perigos genéricos da simplificação da paisagem territorial e genética; os trágicos resultados da massificação industrial, sem salvaguarda dos devidos acessos e das devidas interrupções; os riscos associados à delapidação da biodiversidade e à disrupção do funcionamento dos ecossistemas; os custos e sérios desafios de uma potencial reconversão futura das áreas de exploração para a produção de alimentos ou de qualquer outra cultura… Fico preocupada e nada orgulhosa.
Uma coisa é assumir-se um setor técnico ou industrial como estratégico para o país (como este deve ser) e planear, definir zonas de intervenção e zonas de exclusão, otimizar as áreas de maior aptidão, balizar máximos e mínimos, chegar a compromissos e repartir os lucros e prejuízos por todos, por exemplo através da nacionalização ou da gestão de fundos e lucros (considere-se, por exemplo, a gestão que a Noruega fez com a repartição dos lucros da exploração petrolífera, com reais benefícios quer para a indústria, quer para o cidadão comum). Outra coisa é comprometer o futuro ecológico do país, a segurança e a qualidade de vida das populações (humanas e selvagens) para avultados lucros de escassos privados.
Como pedagoga, choca-me ainda a ligeireza com que se autoriza uma propaganda que ensina às crianças que “esta, a industrial, é a nossa floresta, e está cheia de raposas e de aves”; ou como se apregoa o grande contributo das florestas de rápido crescimento para o resgate de carbono sem explicar que o corte e a transformação rapidamente o devolvem à atmosfera.
Preocupa-me que se injetem subsídios neste setor em particular, que tem tantos aspetos aos quais atentar, enquanto outras fileiras, ecologicamente menos prejudiciais, como o da produção de avelã ou de castanha (por exemplo), regridem.
Apoquenta-me que sucessivamente se responsabilizem os proprietários florestais pelos grandes incêndios, quando no centro e norte do país as propriedades ocupam maioritariamente menos de 5000 m2, e são geridas individualmente por proprietários com pouco ou nenhum conhecimento florestal, 40% dos quais com mais de 65 anos e parcos rendimentos, e que não se tenham ainda implementado soluções de integração e gestão à larga escala que sejam realmente justas, rentáveis e funcionais.
Como referido acima, o tema é complexo e reveste-se de inúmeras camadas técnicas, sociais e ambientais que não se podem assingelar. De nada adianta apontar os problemas sem trabalhar soluções, compromissos… E é aqui que o artigo assume a forma de desabafo cansado. Sejamos honestos: o diálogo—se chegou realmente a existir—tem sido ineficaz e muitas vezes unilateralmente surdo. Até quando? Até que preço?
Quem cuida de quem cuida da biodiversidade?
Custou dez cêntimos, o saco de supermercado que o velhote cuidadosa e vagarosamente dobrava. À sua volta crianças que supus serem os netos, gargalhavam férias. Eu olhava este espetáculo do quotidiano segurando uma geleira elétrica carregada de blocos acumuladores de frio e uns tubinhos de sangue de bichos raros que, nem por nada, podiam descongelar. Nesse dia conduziria praticamente mil quilómetros, a cada duzentos vencia as arritmias quando abria a geleira e confirmava a temperatura, até chegar ao laboratório.
O quase-carinho com que o velhote dobrava o saco, em contraste com a minha aflição gelada a contrarrelógio, fez-me pensar em como nos cruzamos a toda a hora com pessoas com vidas tão completamente diferentes das nossas. As coisas tão díspares que cada um valoriza.
São incontáveis as profissões que têm um certo sentido de missão, do sucesso da qual dependem muitas vidas e o bem-estar coletivo. E cada um desses profissionais leva uma vida quotidiana que, nos seus concretos diários, se enchem ora de um certo heroísmo, ora de minudências risíveis a que ninguém escapa, como repor o papel higiénico ou fazer o IRS. Similarmente, não se conhece a estes profissionais as diárias derrotas e dores, nem nenhum admitirá que se enrola pequenino para receber conchinha.
Sendo inúmeras as tais profissões, reporto os bastidores da que melhor conheço, do pessoal que dedica a sua vida profissional (e também emocional…) a proteger o Planeta. Ou a natureza, ou o ambiente, ou a biodiversidade, como se preferir; neste caso admite-se a grosseira sinonímia.
A luta contra a degradação do mundo natural é também uma luta contra o tempo. O global, de todos, mas também o nosso, pessoal e insignificante ao outro, que realmente importa. E temos invariavelmente assuntos de tempo (entre outros) mal resolvidos.
Ainda enquanto estudamos temos tempo na mesma proporção da sede de aprender. Então esgotamo-lo a atravessar o país para ir ver leirões ou cágados ou espécies cujo nome científico ainda não sabemos pronunciar. Não temos também dinheiro para roupa ou calçado de campo adequados, então passamos a vida de pés molhados e a assoar-nos como os jogadores de futebol. Uns anos depois já temos umas botas razoáveis, mas continua a fugir-nos o tempo. A mãe telefona a perguntar se conseguimos lá ir este Natal, e não estranha quando dizemos que vai depender da recuperação da Matilde (é claro que a Matilde é um bicho qualquer ao nosso cuidado). Ou vamos à consoada, mas temos de voltar logo na manhã seguinte para fazer as amostragens de inverno, porque o equipamento só está disponível nesta semana (imagine-se porquê).
Há sempre um arrojamento a que ir acudir, um andorinhão de asa partida ou, literalmente, um incêndio para ir apagar. Na primavera é normal andarmos nos morcegos até à uma hora da madrugada, e acordarmos às quatro, para estar em campo ao nascer do sol, a tempo dos passarinhos. Durante a tarde, há flores ou répteis ou anfíbios a que atender, e nidificações para monitorizar. Em setembro voltamos a acordar às quatro, mas agora para subir a serra e contar veados. Às vezes preferimos dormir por lá, na serra, numa antiga casa de cantoneiros. Mas temos de varrer o tapete de caganitas de ratazana para poder estender o saco-cama e, claro, acender a lareira para as manter afastadas. Às ratazanas (creio que as caganitas não tenham vida própria). Na jorna, correndo tudo bem, limitamo-nos a trabalhar as normais dezasseis horas, e não furamos vários pneus, não somos assediados por lenhadores, nem somos surpreendidos por matilhas de cães assilvestrados com os dentes arreganhados (esta é uma ótima história, mas não é minha). Entre duas serras passamos no almoço de família com o carro cheio de excrementos e de cadáveres.
Ali pelos trintas surgem os primeiros questionamentos sobre o tempo. A Dulce já tem dois filhos na escola, nós ficaríamos contentes de não nos esquecermos da roupa lavada a apodrecer na máquina. Do ferro ligado não nos esquecemos, porque não acreditamos em roupa amarrotada.
Continuamos a aceitar projetos e lutas, até David nos assumirmos, contra um interminável Golias. Parece que o tempo já não alonga como dantes (nem as costas)—e aí contratamos um doutor engenheiro para nos substituir nalgumas tarefas. O doutor engenheiro tem um diploma idêntico ao nosso, com coisas académicas lá escritas. Só que nenhuma universidade certifica a paixão. O projeto não é do doutor engenheiro, não o vive, não pode usar o carro dele, e só pode estar até às dezoito horas. Na verdade, frustramo-nos, arreliamo-nos, mas chega aquele dia em que também queremos ir embora às dezoito horas.
Porque corremos, carregámos, fintámos e estrebuchámos, mas a porra dos bichos continuam a morrer. Agora já só há quarenta, mas ainda ontem um foi baleado. Os peixes afogaram-se no lodo químico. O carvalho dos morcegos-orelhudos foi abatido a semana passada. O charco dos sapinhos foi aterrado. A Matilde não sobreviveu.
A cada bicho que morre, morre também um pouco de nós (velho bordão). Some-se o tempo insignificante que lhe dedicámos. O tempo que privámos aos nossos. Desvanece-se um pouco da ilusão de podermos fazermos uma pouca diferença.
Lutamos na certeza de um luto que não acaba e que nem sabemos quando começou. Esse pesar que nos move e que nos mata. E é aqui que entram outros heróis, tipicamente nunca falados, que são todos aqueles que nos estendem a alma e os braços. Nem sempre entendem o fascínio pelas eufórbias, mas percebem onde está o nosso coração. E quando este se apreguiça, reanimam-no abnegadamente, sabendo que o terão sempre de partilhar.
O amigo que nos leva ao jogo, a vizinha que nos traz o jantar, a mãe que nos alimenta o cão, a namorada que nos oferece um trofeu de brincar, o irmão que nos ampara. Impõe-se o derradeiro agradecimento. Obrigada por tomarem conta. Com a vossa luz, talvez um dia, por fim, nos tornemos velhinhos satisfeitos a dobrar sacos. Ou a contar patos.
Milene Matos
Bióloga. Comunicadora de ciência.