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LEITURA 3’ 48’’

Cooperação e resiliência:
ações de um processo adaptativo do Canto a Vozes de Mulheres no século XXI

Maria do Rosário Pestana1
Sandra Costa2
1.Etnomusicóloga e Professora Auxiliar no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro. É também investigadora integrada no Instituto de Etnomusicologia Centro de Estudos em Música e Dança (Inet-md).

2.Solista do grupo As Vozes de Manhouce e Tesoureira da Junta de Freguesia de Manhouce, concelho de São Pedro do Sul. Agricultora, colabora nos serviços administrativos da Junta de Freguesia e milita ativamente pela salvaguarda do património local.
No dia 1 de março de 2020, mais 300 cantadeiras e dezenas de cantadores reuniram-se no Teatro Sá de Miranda, em Viana do Castelo, a fim de criarem a Associação Fala de Mulheres e formular um pedido de inscrição do Canto a Vozes de Mulheres na lista Nacional do Património Cultural Imaterial. No final, cada um dos 32 grupos cantou um excerto do seu repertório. A maior parte das cantadeiras não se conhecia mutuamente desconhecendo, inclusive, competências musicais e repertório dos outros grupos de canto a vozes. Este modo de cantar a três ou mais vozes sobrepostas, em movimento predominantemente paralelo, adquiriu localmente diferentes designações, tais como terno, lote, cramol, cantada, cantedo, ou cantarola e foi largamente documentado por sucessivos etnógrafos no centro e norte do país. Neste texto, nós – Sandra Costa, cantadeira e solista do grupo As Vozes de Manhouce e Rosário Pestana, coordenadora do projeto de investigação – damos a conhecer ações que contribuíram para um crescente envolvimento das cantadeiras e investigadores num interesse e compromisso comum, translocal, de salvaguarda do canto a vozes de mulheres, o qual culminou nessa reunião de Viana do Castelo. Refletimos também sobre a resiliência do canto a vozes de mulheres face às medidas para conter a pandemia de Covid-19.
A partilha do canto a vozes na construção de uma comunidade translocal A iniciativa partiu do município de São Pedro do Sul, em 2016, com um convite à Universidade de Aveiro para desenvolver uma investigação de suporte e preparação do referido pedido de inscrição do canto a vozes de mulheres na Lista Nacional do Património Cultural Imaterial. As ações de salvaguarda e divulgação deste modo de cantar pelo grupo de cantadeiras As Vozes de Manhouce e pela sua solista Isabel Silvestre, justificavam o esforço do município. Aliás, paralelamente, também a Junta de Freguesia de Manhouce, na qual uma das autoras deste texto é Tesoureira, promovia regularmente iniciativas locais de estímulo ao canto a vozes e a outras tradições locais, como os Cantos e Encantos, as Desfolhadas ou a Festa da Vitela. Estes eventos estimularam manhoucenses a organizarem-se em grupos e a saírem à rua para cantar a duas e três vozes, inclusive aqueles que por razões de ordem laboral residiam fora da aldeia ou do país. Paralelamente, as iniciativas divulgavam o canto a vozes de Manhouce no exterior, atraindo dezenas de visitantes. Na Universidade de Aveiro foi constituída uma equipa com António Ventura, Daniela Labandeiro, Domingos Morais, Helena Marinho, Jorge Castro Ribeiro, Jorge Graça, Joaquim Branco, João Valentim, Lea Managil e Rui Madeira sendo integrada mais recentemente Raquel Melo. Os investigadores varreram o terreno, abordaram as cantadeiras, os agentes culturais locais, os grupos formalmente instituídos e os grupos não formais, grupos estes que apesar de manterem uma atividade pública, não têm um estatuto jurídico e, por vezes, nem uma designação própria. Os resultados dessa investigação foram sendo alocados num sítio em linha, criado para o efeito, tendo sido também disponibilizados em documentários visuais3. Nesses anos, com exceção do Encontro de Vozes, organizado em Moldes, concelho de Arouca, pelo Conjunto Etnográfico de Moldes de Danças e Corais, não havia uma concentração regular de grupos de canto a vozes de diferentes geografias. A maior parte mantinha atividade apenas em festividades e eventos locais ou inserida nos festivais e encontros de ranchos folclóricos. No processo de pesquisa, as cantadeiras de diferentes localidades manifestaram um interesse em conhecer-se e ouvir-se mutuamente. Por outro lado, a equipa de investigação pretendia fomentar uma comunidade translocal, em torno da performance e partilha de um repertório, competências e valores musicais exclusivos destas cantadeiras e cantadores e de memórias comuns da sociedade agrária tradicional. Assim, organizou-se uma primeira mesa redonda em 19 de outubro de 2019, a segunda em 18 de janeiro e a última no dia 1 de março de 2020.
3.Ver sítio em linha Link 1, e Link 2 e Link 3.
A equipa de investigação pretendia fomentar uma comunidade translocal, em torno da performance e partilha de um repertório, competências e valores musicais exclusivos destas cantadeiras e cantadores e de memórias comuns da sociedade agrária tradicional.
Chegada dos grupos de canto a vozes de mulheres ao Teatro Sá de Miranda
Da performance face-a-face ao registo partilhado no ecrã
O estado de emergência declarado pelo Presidente da República no dia 18 de março, decorrente da pandemia Covid-19, impôs o confinamento obrigatório aos portugueses, travando abruptamente a vida social, o relacionamento interpessoal, as experiências coletivas no espaço público. Os contextos de produção musical, as festas, os festivais, os concertos e espetáculos tornaram-se uma impossibilidade física para cada um de nós e, bem mais dramaticamente, para muitos daqueles que diariamente, face-a-face, faziam acontecer a música.
Após quatro semanas de total desalento, retomámos o processo de oficialização da Associação Fala de Mulheres, cujos objetivos e missão já tinham sido definidos na mesa redonda de 1 de março. Timidamente, foram sendo colocadas no Facebook da Associação Fala de Mulheres memórias do canto a vozes e curtos vídeos de performances realizadas a céu aberto, na rua e noutros espaços públicos, por grupos como o Cramol, as Mulheres do Minho e Folclórico Terras de Arões. Sair à rua a cantar duas ou três modas foi a maneira que encontraram para gerenciar as dificuldades, enfrentar a adversidade e firmar caminhos possíveis que pudessem partilhar com as outras cantadeiras e grupos. Fotografaram-se, filmaram-se e partilharam essas imagens e sons no Facebook. Nos dias subsequentes, a Associação e a página do Facebook ligaram grande parte das cantadeiras e dos grupos na partilha dessas possibilidades. As dificuldades foram muitas e o número das iniciativas foi limitado, mas, ainda assim, vivenciado com regozijo. Esses encontros na rua fizeram ouvir uma ou duas modas, não mais. E as modas que cantaram tenderam a ser “as menos difíceis”, como referiu Maria de Lurdes do grupo de Arões. E porquê? Porque as modas mais complexas, com mais vozes polifónicas exigem proximidade física entre as cantadeiras, o sentir a presença das outras vozes e um treino continuado, condições que não têm. Ainda assim, congratulam-se: “fizemos ouvir os cantos na rua!”.
Sair à rua a cantar duas ou três modas foi a maneira que encontraram para gerenciar as dificuldades, enfrentar a adversidade e firmar caminhos possíveis que pudessem partilhar com as outras cantadeiras e grupos.
Ensaio do grupo Mulheres do Minho no jardim público, em Braga, 2020
Entre maio e julho, as plataformas digitais e a televisão proporcionaram novas oportunidades de divulgação de alguns dos grupos, num processo que criou expectativas, ao mesmo tempo que acentuou as desigualdades entre os mesmos. Usaram o Youtube para sugerir a performance coletiva quando, na verdade, cada uma das cantadeiras e cantadores registou individualmente a sua voz sobre uma faixa pré-gravada. A junção de todas as vozes resultou de um trabalho de edição posterior. Foram os grupos com elementos mais jovens, urbanos, e com mais escolaridade que, em casa, exploraram as tecnologias que tinham ao dispor. Experimentaram e voltaram a repetir. Quando o resultado final lhes agradou, partilharam-no. Assim aconteceu com o Grupo Folclórico da Universidade do Minho e com a Sopa de Pedra. No dia 26 de junho, André Marcos do Grupo Folclórico da Universidade do Minho (GFUM) partilhava o feito no e-mail da associação:
Mesmo de quarentena e afastados uns dos outros, conseguimos unir as vozes para cantar uma das nossas cantigas mais conhecidas: "Meninas de Braga" (cantiga a três vozes). Hoje, partilhamos convosco o concerto online, que será transmitido esta noite, integrando o programa das Festas de São João de Braga 2020, que têm sido ‘dentro de portas’ .
Quatro meses depois, o GFUM uniu vozes de diferentes grupos na edição da cantiga “Pelo mar abaixo”. Sara Yasmine da Sopa de Pedra, explicou do seguinte modo o processo de criação e edição de A Praga:
A composição foi feita logo no início do período em que foi decretado o estado de emergência. A partir daí o material de estudo e guia de gravação foram enviados, junto com instruções que permitissem a cada uma, estudar e gravar-se, a partir de casa. Portanto, durante o processo e até à conclusão do mesmo nunca ninguém se encontrou, ele foi virtual do início ao fim. Entretanto, as gravações foram sendo enviadas por cada uma com seus próprios meios (umas com microfone, outras com telemóvel) mas obedecendo à guia com voz e metrónomo certos, para serem depois reunidas, montadas e editadas no projecto-mãe novamente. Enfim, foi a primeira vez que fizemos tal coisa e acabou por ser surpreendente. Reinventam-se meios e objectivos, reinventam-se recursos e não temos como não aprender com estas coisas. Felizmente!
A Praga cantada por Sopa de Pedra foi composta e editada por Sara Yasmine, com pré-mistura de Teresa Campos, mistura e masterização de Quico Serrano e montagem de vídeo de Inês Campos. Foi divulgada pelo Youtube em maio de 2020 (ver). Grupos como As Vozes de Manhouce, do qual uma das autoras deste texto faz parte, viram os contextos anuais de performance adiados. Nesta aldeia, a Junta de Freguesia com o apoio do município e em colaboração com o grupo As Vozes de Manhouce e Isabel Silvestre, tinha feito no início do ano uma candidatura do canto a três vozes de Manhouce ao concurso 7 Maravilhas da Cultura Popular, patrocinado pela SICAL e difundido pela RTP. A obrigatoriedade do distanciamento social decorrente da pandemia impôs restrições a esta participação. Mesmo assim, equipadas de máscaras e de frasquinhos de gel, realizaram dois ensaios nas ruas da aldeia a fim de elaborarem o vídeo promocional da candidatura. Para isso, mobilizaram toda a aldeia, inclusive o Rancho Folclórico da Casa do Povo de Manhouce, dispensando as manhoucenses mais idosas por motivos sanitários. Vestiram as indumentárias tradicionais, muniram-se de instrumentos e ferramentas de trabalho e saíram para a rua para erguer a voz e cantar, encenando atos e gestos de uma vida comunitária com referentes na sociedade agrária tradicional. No dia 2 de julho receberam a RTP tendo cantado a três vozes a Ladainha de Nossa Senhora, Delaidinha, O vento da noite e Eu esta manhã achei, ao mesmo tempo que conduziam as câmaras da televisão por um itinerário significante: o adro da igreja, a eira, a fonte. Esta participação foi possível porque As Vozes de Manhouce integram várias jovens e mantêm há anos uma atividade performativa constante, decorrente de solicitações externas e da participação regular nos eventos locais organizados pela Junta de Freguesia. No dia 23 de julho participaram na gala do programa que decorreu em direto na RTP a partir de Castro Daire, onde foi votada a representante do distrito de Viseu. Manhouce fez-se representar por uma comitiva simbólica, pois as restrições e as medidas impostas assim o exigiram. No final de agosto retomaram os ensaios semanais no Centro Social de Manhouce, um espaço amplo que permite às cantadeiras manterem distância entre si.
Vestiram as indumentárias tradicionais, muniram-se de instrumentos e ferramentas de trabalho e saíram para a rua para erguer a voz e cantar, encenando atos e gestos de uma vida comunitária com referentes na sociedade agrária tradicional.
Vulnerabilidades e desigualdades As ações de salvaguarda e reconhecimento do canto de vozes de mulheres tiveram de enfrentar um desafio inesperado com a pandemia Covid-19. Se houve cantadeiras e cantadores resilientes aos obstáculos que a pandemia colocou a esta prática musical, houve também cantadeiras e grupos, os mais velhos, os menos urbanos, os menos escolarizados, que enfrentaram esta nova situação sem preparação e com desconhecimento, quando muito como espectadores tímidos das novas regras do jogo. Foram sobretudo os jovens que assumiram dinâmicas de interação local e translocal visíveis nas redes sociais e plataformas multimédia. E foram os jovens que encontraram neste desafio uma oportunidade para escapar às constrições de uma tradição musical fortemente “legislada” pelo folclorismo: juntaram cantadeiras e cantadores de diferentes grupos e localidades; fizeram edições com colagens e sobreposição de vozes; compuseram novas cantigas. Jeff Tod Titon advoga uma teoria da resiliência e uma prática de gestão adaptativa para analisar as vulnerabilidades que as culturas enfrentam, apelando a um trabalho de cooperação entre agentes culturais, comunidades, detentores da tradição e estudiosos. Face aos desafios colocados pela imposição do afastamento social, nós, cantadeiras, cantadores e académicos, temos – talvez mais do que nunca – de imaginar soluções conjuntas e desenvolver uma prática e um conhecimento partilhado em benefício do património cultural imaterial comum, da memória social que nos faz sentir parte de uma comunidade, do interesse público e da inclusão e participação social. Este texto é uma tímida tentativa de resposta a esse apelo.
Ensaio do grupo As Vozes de Manhouce, Setembro de 2020