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“Páscoa em Casa”:
Manifestações Religiosas em Tempo de Pandemia

Luzia Gameiro 1
António Ventura 2
1.Performer do grupo de Encomendação das Almas.

2.Doutorando em Etnomusicologia e integra a equipa do projeto “EcoMusic – Práticas Sustentáveis: um estudo do pós-folclorismo em Portugal no século XXI”.
Este artigo é resultado de uma investigação a decorrer sobre manifestações religiosas que ocorrem no concelho de Idanha-a-Nova, distrito de Castelo-Branco, Portugal. Os “Mistérios da Páscoa”, (designação criada por eruditos locais e órgãos institucionais) são um conjunto de performances musicais que ocorrem durante o tempo da Quaresma, à noite, nas ruas de várias aldeias do concelho. De entre estes, destacam-se os Martírios, a Procissão dos Passos, Canto da Verónica e a Encomendação das Almas. Tomando como exemplo a performance musical da Encomendação das Almas, os seus intervenientes percorrem um itinerário pré-determinado a pé, em silêncio, intercalado com paragens em locais altos. Em cada uma das paragens, cujo número pode variar de aldeia para aldeia, o grupo canta em uníssono intercalando com as orações Pai Nosso e Avé Maria. Idanha-a-Nova está situado no centro de Portugal e, com cerca de 10000 habitantes é o quarto município mais extenso do país. Foi recentemente classificado como Cidade Criativa da Música pela UNESCO, em 2015, e em Fevereiro de 2018, foi submetida uma candidatura à Lista das Boas Práticas do Património Cultural Imaterial da UNESCO. Desde a primeira década do século XXI tem-se observado um forte investimento, tanto humano como material na performance, com a autarquia e eruditos locais a contribuir principalmente para a sua revitalização no âmbito de uma candidatura a Património Cultural Imaterial da UNESCO. Com esta proposta procurar-se-á compreender as dinâmicas que a pandemia de Covid 19 motivou na participação das populações, performers, públicos e nos decisores e aprofundar o caso específico de uma das autoras. O presente artigo está escrito a quatro mãos com a colaboração de Luzia Gameiro, habitante de Penha Garcia, Idanha-a-Nova, e participante de vários grupos formalmente organizados na aldeia. Este trabalho de coautoria foi realizado à distância, através de chamada telefónica, e-mail e por WhatsApp.
Cartaz Promocional da Autarquia de Idanha-a-Nova
Esta situação abriu a oportunidade de acontecerem “novas performances”, no sentido em que um dos domínios mais centrais e importantes, o espaço percorrido a pé, foi transportado da rua, para dentro de casa.
Face ao desenvolvimento de novos contextos e mudança de comportamentos devido ao surto de COVID-19, as populações e agentes políticos adaptaram-se e transformaram os comportamentos sociais ritualizados relativamente aos “Mistérios da Páscoa em Idanha”. Seguido do cancelamento de todas as atividades quaresmais no concelho por parte da autarquia, de acordo com as recomendações do governo, várias pessoas e grupos avançaram com as performances musicais ainda que impossibilitadas de sair de suas casas. Esta situação abriu a oportunidade de acontecerem “novas performances”, no sentido em que um dos domínios mais centrais e importantes, o espaço percorrido a pé, foi transportado da rua, para dentro de casa. Vários destes acontecimentos foram apoiados pela autarquia e amplamente divulgados nos meios de comunicação social como o semanário Visão ou o Jornal da Noite (SIC). A autarquia de Idanha-a-Nova recorreu assim a uma abordagem virtual face à situação. A iniciativa “Páscoa em casa”, apelou às pessoas que permanecessem confinadas e continuassem com os seus rituais e tradições a partir das suas residências. Por exemplo, no Sábado de Aleluia, na impossibilidade de acolher as multidões que em anos anteriores se juntaram no largo da Igreja Matriz, estendendo-se pelas ruas da Idanha-a-Nova para festejar a Ressurreição através do toque dos chocalhos e apitos, a autarquia solicitou aos residentes uma participação da janela das suas casas. Num dos cartazes de divulgação nos meios de comunicação social e redes sociais, pode ler-se: “Fique em Casa! Levamos a tradição à sua porta! Participe da sua janela!”. Assim no sábado dia 11 de abril, uma carrinha com um sistema de amplificação sonora fez ouvir pelas ruas de Idanha-a-Nova uma gravação da Filarmónica Idanhense que difundia a música que costumava tocar na procissão. De acordo com o pároco da vila: “Nós tínhamos de fazer qualquer coisa que, não é o autêntico, mas que mostrasse que a tradição está viva, que o povo está cá!” (entr. Adelino 2020). Outra das iniciativas foi o ciclo de cinema documental com filmes sobre temáticas relacionadas com a Quaresma. Foram transmitidos em direto no Facebook do Município de Idanha-a-Nova, da página “Idanha-a-Nova City of Music” e do Centro Cultural Raiano. Os filmes documentais tiveram uma média de 60 pessoas por exibição, e várias partilhas e comentários, o que revela uma adesão significativa de pessoas, tanto os normais “seguidores” e participantes destas tradições religiosas, como novas pessoas, potenciais turistas, que ficaram a conhecer uma nova expressão cultural. As próprias performers, com especial destaque para as das Encomendação das Almas e Martírios do Senhor, mantiveram o seu ritual a partir de casa, com transmissões em direto através da rede social Facebook.
Estreia de um filme documental em direto no Facebook do Município de Idanha-a-Nova
Já em confinamento obrigatório, Luzia Gameiro, 73 anos, decidiu começar a transmitir em direto pela rede social Facebook os cânticos e orações próprias do acontecimento religioso.
No dia 15 de março de 2020, data da realização da Via Sacra na capela de S. Lourenço, em Penha Garcia, já em confinamento obrigatório, Luzia Gameiro, 73 anos, decidiu começar a transmitir em direto pela rede social Facebook os cânticos e orações próprias do acontecimento religioso. Impossibilitada de participar e coorganizar a Via Sacra, munida de um tablet, ligado à internet, um cenário preparado (uma mesa decorada com flores e uma nossa senhora) e as vestes próprias, começou com a transmissão: “Pronto, agora assim está melhor, tínhamos aqui demasiadas ferramentas. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Ámen!”. Uma amiga junta-se às orações em direto e, através do telefone, colocado em modo alta voz, participa também na transmissão. De acordo com Luzia Gameiro: “Eu pensei, porque é que eu não faço lá em casa? Não tenho lá as máquinas, mas faço à minha maneira” (Ibidem). Luzia Gameiro nasceu em Penha Garcia em 1946, no seio de uma família de trabalhadores rurais e, com 5 irmãos, “teve a sorte” de ir à escola onde tirou a 4ª classe. Aos 26 anos emigrou para Paris com a sua filha de três anos e o marido, à procura de uma vida melhor, onde trabalhou como porteira. Aposentada, regressou em 2010 a Penha Garcia integrando-se imediatamente nas atividades da igreja (tendo inclusivamente tirado o curso de ministra da comunhão) e nos grupos organizados de folclore e cânticos quaresmais, de entre os quais se destacam o Rancho Folclórico de Penha Garcia, o Conjunto Etnográfico “Os Garcias” e o grupo de Encomendação das Almas.
Luzia Gameiro com a sua família em Penha Garcia (2ª a contar da esquerda, primeira fila)
3. Vídeo dos Martírios do Senhor: ver vídeo
Luzia Gameiro em direto no Facebook
Em 2020, o confinamento obrigatório decorrente da situação pandémica impeliu-a a reinventar a sua participação nas tradições quaresmais (Martírios, Louvado Nocíssimo, Santos Passos, Via Sacra): transformou a sua sala de estar num altar e, de frente para o ecrã do tablet, performou cânticos e orações. O registo foi difundido pelo Facebook, tendo recebido ‘likes’ de portugueses residentes no Brasil, Estados Unidos da América e França. De acordo com Luzia Gameiro: “Uma amiga minha estava no telefone fixo. E o meu telefone fixo como se pode pôr em voz alta, eu pus perto (com uma certa distância para não fazer interferências), perto da gravação com o telemóvel que eu estava a fazer, para captar” (entr. Gameiro 2020).3 Esta iniciativa de Luzia Gameiro, para além de permitir a um leque de pessoas muito grande, presenciarem ainda que virtualmente as performances musicais e religiosas próprias da Quaresma, motivou algumas pessoas da aldeia. Uma das participantes foi Maria Nabais, conhecida por Ti Nabais, que tocou as Alvíssaras (através do sistema de alta voz) juntamente com Luzia no Domingo de Páscoa com um alguidar de plástico em vez do adufe, por se encontrar em Castelo Branco e não na aldeia de Penha Garcia. Com a série de vídeos publicados em direto semanalmente o envolvimento das pessoas, com comentários, visualizações e “gostos” foi muito superior ao esperado, com as intervenientes a terem pedidos para continuarem a atividade virtual mesmo após a Quaresma. De acordo com Luzia Gameiro, foi necessário continuar a realização destas performances, pois permitiu não só dar a oportunidade às pessoas de conhecer estas práticas, mas também de revivê-las desde os diversos locais onde se encontram.
Foi possível observar uma resiliência por parte das performers que não deixaram que as performances musicais estivessem um ano sem se realizar
Conclusão Relativamente ao trabalho como investigador, ao procurar aprofundar sobre o trabalho de campo, num terreno sempre em mudança e especialmente dadas as circunstâncias especiais, foi necessário convergir os “velhos” métodos com os novos desafios, considerando o terreno como uma junção, uma convergência de várias participações, performances e dinâmicas de revitalização e patrimonialização. Cooley destaca essa convergência: “If public participation in music hinges on the convergence of old and new media, we must adjust our methods and embrace that juncture as our field site.” (Cooley 2008, 106). Com as transformações descritas atrás, não só Luzia Gameiro teve de se adaptar, mas também o investigador. Devido ao confinamento social, foi imposta uma revisão dos métodos de pesquisa usados com a necessidade de permanecer em casa, mas ao mesmo tempo prosseguir no terreno. Esta técnica virtual, já fazia parte do trabalho do investigador ainda que com pouca frequência. Neste momento, há uma maior interação entre os autores deste texto (o investigador, a performer) através do telefone e das redes sociais, e prova disso é este artigo. Nos estudos sobre “Virtual Fieldwork”, onde se destaca o livro “Shadows in the Field”, e de acordo com Bruno Nettl, a Internet não pode deixar de fazer parte do trabalho de campo, ainda que seja considerada uma fonte “impessoal”: “We learned that fieldwork may include the gathering of ethnomusicological data from seemingly impersonal sources such as recordings and the Internet.” (Nettl foreword Barz, Cooley 2008). Desta maneira, e como procurámos documentar será possível compreender o terreno como estando intimamente ligado tanto ao domínio do físico e do “face-to-face” (cara-a-cara), mas também ao domínio do virtual e do “screen-to-screen” (ecrã-para-ecrã). É necessário re-imaginar o terreno e ir adaptando os nossos métodos às convergências e por vezes divergências entre os dois domínios: “As the apparatuses of music- making change, we must continuously re-imagine the “field,” and redefine how we work there.” Não só a investigação foi forçosamente transformada devido às circunstâncias da pandemia em Portugal, nomeadamente na impossibilidade de deslocações, mas também o próprio terreno teve de se adaptar, tanto no que se refere às performers, que na impossibilidade de sair à rua, realizaram a performance a partir de suas casas; como à autarquia, que viu uma oportunidade de se destacar nas redes sociais e nos meios de comunicação social promovendo a iniciativa “Páscoa em Casa”. Durante um tempo muito desafiador para todos, procurámos documentar as transformações que ocorreram e ocorrem no terreno. Foi possível observar uma resiliência por parte das performers que não deixaram que as performances musicais estivessem um ano sem se realizar, recorrendo a novos métodos e ativando novos conhecimentos para se adaptarem e recontextualizarem algo que faz parte do seu quotidiano. Relativamente à autarquia e aos eruditos locais, a aposta nos media e também na organização de novos eventos e iniciativas é também reveladora do cuidado de preservação de práticas revitalizadas e em vias de patrimonialização. Em modo de conclusão terminamos com uma oração transformada por Luzia Gameiro, que reproduzimos:
Abençoai ó Maria Esta nossa Freguesia Este Povo que em vós confia Livrai-nos desta Pandemia.
Cooley, Timothy. Barz, Gregory. 2008. Shadows in the Field – New Perspectives for Fieldwork in Ethnomusicology. New York: Oxford University Press, p. 106.
Entrevista a Pe. Adelino Lourenço – Reportagem SIC Notícias – Link