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LEITURA 6’ 52’’

Louvam-se ainda cantadores e cantadeiras.
Notas sobre a desgarrada

António Medeiros1
Fernando Cerqueira Barros2
1.Antropólogo, investigador do CEI_IUL, professor do Departamento de Antropologia do ISCTE_IUL, autor de várias publicações.

2.Arquitecto, investigador no CEAU-PACT (FAUP), doutorando em Arquitectura (FAUP), autor de vários estudos e publicações sobre território, património e arquitectura popular.
As “cantigas ao desafio” – ou “cantigas à desgarrada” – são despiques poéticos espontâneos, que no noroeste de Portugal têm uma expressão muito própria e diferenciada. Estas performances fazem-se com acompanhamento musical, e os seus intérpretes gostam de dizer-se “cantadores” ou “cantadeiras”, e “tocadores”. Expõem referências, léxico e valores de origem rural, muito nítidos nestes confrontos poéticos, cuja feição agonística é intensa na maior parte das vezes. Actualmente, as expressões da desgarrada são vibrantes e os seus públicos estão muito alargados, uma vitalidade com poucos paralelos entre as práticas afins na Península Ibérica. Os termos “desafio” e “desgarrada” são usados noutras partes de Portugal, mas as diferenças do despique do noroeste do país são notadas por cantadores, tocadores e amadores. Dizem, por exemplo, que as suas “desgarradas” são uma coisa “mais do Minho”, com mais “alegria”, “agressividade” ou “ousadia”. Também sublinham a “alegria” dos acompanhamentos mais habituais, e definem as quadras trocadas como mais “brejeiras”, com “mais malandrice”, mais “dada à brincadeira”. Distinguem facilmente estas interpretações dos improvisos mais “do sul” (nomeadamente nas Beiras, onde podem ser feitas ao som do fado corrido e a “ousadia” e a “brincadeira” são menos notórias), ou das regueifas dos “galegos”, e também da maneira como se canta ao desafio já em Trás-os-Montes.
Dizem, por exemplo, que as suas “desgarradas” são uma coisa “mais do Minho”, com mais “alegria”, “agressividade” ou “ousadia”.
Cantares ao Desafio em Santa Marta da Falperra; Eduardo Celorico, Henrique do Lindoso, Pedro Cachadinha (fonte: arquivo pessoal de Gabriel Mendes da Costa)
Para além dos distritos do Minho actual, fazem-se desgarradas com as características anotadas ainda ao sul do Douro, e por vales e encostas mais para leste. No entanto, é dentro do espaço da antiga província do Entre-Douro-Minho que está a origem – própria ou familiar – de todos os cantores e cantadeiras com “fama” – ou “nome” – ainda hoje em dia. É grande o seu número actual, maior do que em qualquer outro momento, como é reconhecido de forma unânime. Por outro lado, são cada vez mais amplos os contextos da circulação dos cantadores, e muito variado o número dos suportes de divulgação das suas performances. Isto foi algo que começou a acontecer nos anos 60 do século passado, quando se começaram a fazer gravações comerciais de discos de 45 rotações e tournées junto de comunidades emigrantes.
A partir da década de 60 e 70 do séc.XX alguns cantadores ao desafio foram editados em discos vinil. (várias fontes)
Apesar das muitas transformações – nomeadamente o sucesso comercial de alguns cantadores e o seu reconhecimento em lugares distantes – a memória da desgarrada e dos seus cantadores ainda é sobretudo oral e muito pouco profunda. Assim, por exemplo, resulta muito vaga a lembrança de cantadores – e ainda mais de cantadeiras – activos antes dos anos 60. Esta ausência de memórias é um resultado da menorização e das censuras que esta tradição poética – tão subversiva – sempre sofreu. Descréditos e censuras que ainda eram muito nítidos até aos fins do século passado, quando um processo de objectivação cultural destas práticas performativas se começou a desdobrar nalguns dos concelhos minhotos. Multiplicou-se ultimamente a organização de encontros de cantadores e tocadores, e a incorporação de espectáculos de cantares ao desafio no programa de romarias e festas concelhias e locais.
Manuel Sargaceira, e Cunha de Vila Verde
“Cantigas de maldizer,
Já vem de tempos antigos,
Não são feitas para ofender,
É para brincar com os amigos…

Não fiquem apreensivos,
Com as cantigas brejeiras,
Não há razões, nem motivos,
P'ra que vos deiam canseiras.

Em Romarias e Feiras,
Fizeram grande alarido,
Cantadores, e cantadeiras,
P’ra o povo ver entretido…
Mas tudo era inibido,
Ai de quem pisasse a linha,
Pois vinha a acabar detido,
A levar lenha na espinha…

Mesmo assim essa gentinha,
Odiando os maiorais,
Mostrava a raça que tinha,
Dançando nos arraiais!
Carvalho da Cucana e Casimiro de Vieira do Minho (fonte: Youtube)
O toque da “concertina” (acordeão diatónico) acompanha quase sempre as desgarradas, seja na mão de um dos cantadores ou cantadeiras, ou por um acompanhante – “o tocador” – e a “cana verde”, ou “malhão” são os ritmos mais usuais; dão o mote e o tom do desafio até ao fim. Trocam-se inicialmente reconhecimentos dos adversários e saudações, e depois conhecimentos, provocações ou gracejos, sempre montados em quadras, ou sextilhas, tão perfeitas quanto possível. “Duas quadras a cada um” é a formulação mais usual, embora se aceitem outras combinações, e se observe em alguns cantadores um gosto especial em cantar de forma mais livre, “encadilhando” várias quadras. Estas performances podem ser muito longas, na medida das circunstâncias e da “paixão” pela “canta” que cresça entre todos os envolvidos. Uma mulher e um homem ou dois homens – ou, outras vezes ainda, vários cantadores e cantadeiras – enfrentam-se em trocas acesas de cantares. Tradicionalmente fazem-no sem amplificação de som, nem limites de tempo, e ainda hoje é fora de qualquer palco, no “terreiro” ou no “chão” (na romaria, na taberna ou no café), que os desafios mais intensos e apreciados por todos os intervenientes acontecem. Nestas circunstâncias, a linguagem e os temas variam muito, as censuras são poucas e, nesta medida, as emoções do desafio podem desdobrar-se durante horas, como frequentemente acontece. Até hoje todos os “cantadores” e “cantadeiras” do noroeste – mesmo os que tem compromissos com muitos espetáculos – podem ser encontrados a cantar nas madrugadas de romarias, ou em cafés e tabernas, porque ainda é na “canta” no “chão” que se aprende e ganha reconhecimento (ou “fama”) entre pares, entendidos, e apreciadores. Nestas circunstâncias, a voz de quem canta, a “educação”, o domínio das formas e de todos os preceitos da performance, distingue o bom intérprete, e também são qualidades estimadas. Mas, quando se canta “(ao) profano” – como é mais frequente acontecer nos tempos recentes – nestas situações, quem ouve valoriza sobretudo o engenho irónico e agressividade dos cantadores.
Espera-se dos cantadores e das cantadeiras, em qualquer situação, ironias agudas e uma imaginação poética provocadora.
Adília de Arouca, Zé Cachadinha e Cristiana Sá (fonte: Youtube)
Espera-se dos cantadores e das cantadeiras, em qualquer situação, ironias agudas e uma imaginação poética provocadora. Quando o desafio corre no “chão”, desde a assistência – uma roda muito cerrada se a expectativa é intensa – espicaça-se o espírito competitivo com incitamentos vivos e lisonjas. Faz-se logo quando ainda correm apresentações, cumprimentos e reconhecimentos mútuos – que são da praxe – e os cantadores ainda escolhem “o caminho a seguir” (o tema, se o decidem fazer). Depois, as emoções e as incitações crescerão ainda mais à medida que as quadras trocadas propõem ironias e desqualificações mútuas, cada vez mais intensas. Maldizem-se as características pessoais, a terra de origem, a moralidade, a inteligência, ou a vitalidade do(s) adversário(s), e as menções eróticas e sexuais são recorrentes e ostensivas (seja de forma directa, ou por palavras que permitem subentender o que não se diz “por explicado”), sobretudo quando se desafiam uma mulher e um homem. As quadras muito inspiradas, os conceitos inéditos que nelas caibam, é que surpreendem e abrem mais o riso e interjeições emotivas da assistência. Cantam-se ainda desgarradas “ao fundamento” – “fundamento”, ou “com fundamento” – de menor exuberância agonística, mais formalizadas, de algum modo. Surgem como debates de conhecimentos estes desafios, onde, apesar de tudo, também as ironias e os acintes mútuos são esperados. Estas já são hoje formas mais raras de cantar, com poucos intérpretes que dominem bem os seus preceitos e os motivos mais tradicionais. Na medida da mestria dos cantadores, também no cantar “ao fundamento” se podem abrir emoções intensas entre a audiência. Nestas desgarradas o engenho poético demonstra-se pelo domínio de conhecimentos explícitos, e na proposta de conceitos mais profundos, muitas vezes em tom pedagógico, diminuindo o adversário. Os temas mais habituais no cantar “ao fundamento” são religiosos ou históricos, e o estudo intencional e o bom conhecimento da tradição são os recursos que cantadores mais sabedores utilizam para “dar uma lição” aos adversários. Fazem-se perguntas e demonstra-se o saber próprio para conseguir o favor da audiência, com quadras feitas a propósito da vida de santos padroeiros, das suas lendas e milagres, episódios bíblicos ou história de Portugal. Mas especulações mais abstractas ou temas filosóficos – “a verdade e a mentira”; “o amor e o dinheiro”; “o vinho e a água” – podem surgir glosados no desenvolvimento do desafio ou ser propostos desde início.

É nos limites da velha província do Entre-Douro-e-Minho, e nas comunidades de emigrantes com esta origem, que se canta ao desafio de um modo mais espontâneo. Fazem-se desgarradas no terreiro de romarias, cafés e tabernas, festas de família; ou, quando acontecem mais longe em convívios particulares, em “casas de concelho”, ou associações de emigrantes. Mas também se canta desde há décadas em palcos grandes, nas sedes dos vários concelhos e distritos do Minho, e até em estúdios de televisão nacionais (agora com certa assiduidade), algo que só começou a acontecer recentemente, como já sugerimos no início. Nas performances para um público mais alargado impõem-se outros ritmos, regras e censuras muito diferentes das observadas no terreiro da romaria ou no café. Por exemplo, nos programas oficiais de festas locais, nos palcos grandes, concursos, festivais e maratonas de “cantares ao desafio” podem suceder-se 10 ou mais cantadores, em tempos cingidos e definidos à partida (que raramente ultrapassam os 20 ou 30 minutos). O mesmo acontece em tertúlias de rádio e na televisão, onde o tempo concedido (4 a 5 minutos, ou até menos) é caracteristicamente curto e insuficiente para “abrir a memória” (desenvolver o tema). Nas circunstâncias novas de performance à desgarrada, desaparece o tempo das apresentações feitas com as delongas, que só o “chão” ou as noites de boémia do café e da romaria permitem. Pode notar-se que apresentações e cumprimentos se mantêm no contexto das novas performances nos palcos e nos estúdios; porém as suas fórmulas surgem mais rígidas e sucintas, híper-codificadas, de algum modo. Surgem assim fechadas as inúmeras possibilidades de glosa que a apresentação de si, do nome próprio e da origem local do intérprete permitem e que são tão características quando se canta no “chão”. Ao terreiro da romaria ou ao café chegava-se – e ainda se chega – para cantar sem nome conhecido ou então com o peso da “fama” e das adulações. Em qualquer dos casos, esperam-se alardes personalistas, louvores de si próprio e louvores da terra de origem nas apresentações, mas também em momentos sucessivos da “canta”.
Desafio na Romaria de São Bartolomeu, Ponte da Barca; Irene de Gaia e Domingos da Soalheira (fonte: Youtube)
Manuel Sargaceira
“Sou oriundo de Grade,
Este Nelo não inventa,
Nasci em 30 de Março,
Do ano de 50…

Serei sempre português,
E não troco a bandeira,
Além de ter percorrido,
Já muita terra estrangeira,
Sou filho de António Amorim
E de Laurinda Sargaceira…

Por Grade ser minha terra,
Por ela tenho paixão,
E nela tenho ligadas
Raízes do coração

No ano 78,
(Da ideia não me sai),
Que num Campo Santo pequeno
Ali repousa meu pai.

Também tenho mais alguém,
(As aranhas formam teias),
O meu querido irmão,
Corre-me o sangue nas veias.
Oh meu pai e meu irmão,
Eu de vós não me esqueci,
Tantas vezes aí fui,
P’ra rezar ao pé de ti,
Que o Senhor vos cubra d’anjos,
Tantas vezes lhe pedi.

(…)

Eu nasci p’ra cantador,
A minha vida é cantar,
Eu tantas vezes cantei,
Com vontade de chorar.

Por vezes saio de casa,
Com a má disposição,
P’ra não deixar acabar,
A velhinha tradição…

Sou dos Arcos bem sabeis,
P’ra vós não é novidade,
Nasci no lugar da Agrela,
Na freguesia de Grade,
E p’ra todos vou deixar,
Um abraço de amizade.”
A romaria, enquanto local de encontro e de confrontos ditava que se identificavam de cantadeiras e cantadores por referência ao nome da terra de origem – freguesia ou concelho – a maior parte das vezes. Hoje ainda, lembram-se as figuras remotas da cantoria como o “Pereira da Apúlia”, o “Peta de Vilaverde”, o “Mendes de Serzedelo”, o “Vilarinho de Covas”, ou o “Valdemar de São João da Madeira” (grandes cantadores desaparecidos, há pouco tempo, aliás). Vivem veteranos celebrados, como o “Gonçalves de Guimarães, o “Delfim dos Arcos”, o “Marinho da Barca”, ou o “Zé Carvalhal da Ermida”; e também são muito famosos em toda a região o “Cunha de Vila Verde”, a “Irene de Gaia, a “Celeste da Barca”, o “Carvalho de Cucana”, a “Adília de Arouca”, o “Loureiro de Barcelos”, o “Miranda das Neves”, o “Duarte da Póvoa”, ou o “Ribeiro de Silvares”, entre muitos outros, estes com carreiras ainda muito activas. Fazem os seus nomes desta maneira tradicional cantadores ainda jovens, como o “Henrique de Lindoso”, o “Pi d’Areosa”, ou o “Eduardo Celorico”, o "Emanuel de Grade”. Identificam-se também os cantadores, usando alcunhas ou nomes de família de alguma maneira sonantes ou inconfundíveis, alguns deles de grande fama como era o caso do falecido “Manuel Sargaceira”, do “Augusto Canário”, dos “Cachadinhas” (várias gerações), do Domingos “da Soalheira” ou do “Valter São Martinho”, nomes também (auto)celebrados e mote de réplicas em muitas quadras nas noites no “terreiro”. Até hoje, a topografia mais significativa dos cantares ao desafio é dada pela origem dos cantadores e cantadeiras mais reconhecidos e pela escolha dos nomes que continuam a fazer. Por exemplo, o seu mapeamento, ao longo das décadas de que há memória dá conta da vivacidade desta tradição, e das mudanças que tem conhecido nas décadas recentes. Também são referências importantes desta topografia os locais onde grandes cantadores e cantadeiras fazem questão de comparecer, como a romaria da Senhora da Peneda, as Feiras Novas de Ponte de Lima, a romaria de São João de Arga, o São Bento da Porta-Aberta, São Torcato de Guimarães, ou a Santa Marta da Falperra, por exemplo. Acorrem ali para cantar no “chão” com os seus pares, aquém dos palcos e dos estúdios que muitos deles já frequentam desde há décadas. Entre outros registos, falam as escolhas de nomes e estas comparências no terreiro dos entrosamentos e da continuidade sem quebras desta tradição vibrante.
Augusto Canário (fonte: arquivo de Augusto Canário)
Manuel Sargaceira e Cunha de Vila Verde
Quem quiser ser cantador
Primeiro tem que ter dom,
E depois ser conhecedor,
Das regras da profissão.


Os cantadores que lá vão,
Com os quais eu convivia,
Sabiam de religião,
e respeitavam a hierarquia.


Perante a precaridade,
Com astúcia empreender,
Que Deus deixou a habilidade,
Aos que tem menos poder.


Quem nesta vida se meter,
Que o faça com cuidado.

Que se um dia quiser ser,
Famoso e respeitado.
Já ninguém canta o sagrado,
Por falta de aptidão,
Porque esse foi comutado,
Em prol do palavrão. 

Há quem se sinta feliz, 
Dizendo tudo o que faz, 
E há quem diga que fez, 
O que nunca foi capaz!


A gente assim se entreteu,

Temos de concluir, 
Ao mesmo tempo serviu, 
Para entreter quem veio ouvir.