1.Investigador. Universidade de Aveiro/ INET-md, Instituto de Etnomusicologia, Centro de Estudos em Música e Dança.
2.Construtor de cordofones. Associação Académica de Coimbra.
Fernando Meireles na sua oficina de construção de instrumentos musicais.
Associação Académica de Coimbra, janeiro de 2020
Discreta, sem placa na porta, a oficina de Fernando Meireles quase passa despercebida a quem percorre os longos corredores do edifício da Associação Académica de Coimbra. É neste espaço, num recanto da sala de ensaios da Tuna Académica da Universidade de Coimbra, que Meireles constrói e restaura instrumentos musicais desde 1986.
Chegado a Coimbra três anos antes para estudar violino no Conservatório Regional, trazia na bagagem um cavaquinho, que começara a tocar atraído pela "sonoridade fresca e leve" do disco de Júlio Pereira. O cavaquinho de Fernando Meireles, porém, não o satisfazia: "eu tinha um violino, e queria que o meu cavaquinho fosse tão bom e tão perfeito... tão nobre como o meu violino. A minha meta era essa". Meireles pôs mãos à obra: num quarto da Real República TrunféKopos, onde vivia, construiu o seu primeiro cavaquinho. Seguiram-se a guitarra, o bandolim, a sanfona e as violas populares portuguesas, entre muitos outros cordofones.
O estudo constante, o rigor e o pragmatismo que Fernando Meireles imprime à arte que abraçou há mais de três décadas revelam-se na voz dos instrumentos que lhe saem das mãos. Pela sua oficina passaram vários aprendizes (muitos deles atualmente estabelecidos como construtores, em vários pontos do país) que, num misto de reverência e amizade, a ele se referem como Mestre Meireles.
1.Investigador. Universidade de Aveiro/ INET-md, Instituto de Etnomusicologia, Centro de Estudos em Música e Dança.
2.Construtor de cordofones. Associação Académica de Coimbra.
Fernando Meireles na sua oficina de construção de instrumentos musicais.
Associação Académica de Coimbra, janeiro de 2020
O estudo constante, o rigor e o pragmatismo que Fernando Meireles imprime à arte que abraçou há mais de três décadas revelam-se na voz dos instrumentos que lhe saem das mãos.
Quem entra nesta oficina acha-se envolvido pelos sons da madeira a ganhar forma e pelos odores das madeiras, das colas e dos vernizes. Igualmente envolvente é o entusiasmo com que Meireles fala do seu ofício. Num quadro de ardósia, gasto pelo tempo, alguém escreveu: Oficina Meireles – templo de criação onde a matéria se transforma em som. Cuidadosamente alinhados nas paredes da oficina, dezenas de instrumentos aguardam pela atenção deste artesão de sons. Entre eles, duas violas toeiras, que servem de pretexto para mais uma conversa com Fernando Meireles, um dos protagonistas do projeto de revivalismo deste instrumento, a partir da segunda metade da década de 1980.
Por esta altura, a viola toeira era um instrumento praticamente desconhecido entre os grupos musicais que germinavam na academia de Coimbra. Estava também ausente das tocatas dos agrupamentos folclóricos da cidade há já várias décadas. A maioria dos tocadores não tinha sequer memória desta viola. Raul Simões que, em meados da década de 1960, tinha sido descrito pelo etnólogo Ernesto Veiga de Oliveira como "um último construtor e tocador da viola toeira", falecera em 1981, deixando em suspenso uma linhagem de violeiros tecida nas oficinas conimbricenses pelo menos desde meados do século anterior. Como veremos, caberia a Fernando Meireles a missão de restabelecer essa linhagem.
Tempos de revivalismo: a (re)descoberta da viola toeira, na década de 1980
No final dos anos 1980 chegaram à banca de trabalho de Fernando Meireles várias violas toeiras, a maioria das quais esquecidas durante décadas em arrecadações e sótãos empoeirados. Os sucessivos pedidos de restauro prenunciavam uma dinâmica de revivalismo deste instrumento, que viria a intensificar-se na década seguinte.
Reportando-se ao período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974, Meireles relaciona a descoberta da viola toeira com as "movimentações à volta de tudo o que era cultura tradicional". Segundo este artesão, o desígnio de dar uma nova vida a este cordofone partiu do "pessoal mais erudito" de Coimbra, designadamente académicos e músicos que visavam conferir uma maior autenticidade aos agrupamentos de folclore dos quais faziam parte. Nos anos 1990, a viola toeira viria a conquistar também o interesse dos músicos de grupos como a Brigada Victor Jara. O revivalismo dos processos de construção da viola toeira foi igualmente animado por iniciativas de colecionismo. Na verdade, uma das primeiras toeiras construídas por Fernando Meireles resultou de uma encomenda de Manuel Louzã Henriques, um conceituado médico psiquiatra que, desde meados da década de 1960, se dedicava à coleção de instrumentos musicais populares portugueses.
Uma das bancas de trabalho da oficina de Fernando Meireles.
Associação Académica de Coimbra, janeiro de 2020
o desígnio de dar uma nova vida a este cordofone partiu do "pessoal mais erudito" de Coimbra, designadamente académicos e músicos que visavam conferir uma maior autenticidade aos agrupamentos de folclore dos quais faziam parte.
Violas toeiras em processo de construção e restauro, na oficina de Fernando Meireles.
Associação Académica de Coimbra, janeiro de 2020
Decidido a dar o seu contributo para resgatar do esquecimento a viola toeira, Fernando Meireles empenhou-se num trabalho de pesquisa sobre este cordofone. Em retrospetiva, revela que a obra Instrumentos Musicais Populares Portugueses, de Veiga de Oliveira, foi determinante na sua aprendizagem. A leitura deste livro, que encontrou num velho alfarrabista de Coimbra, conduziu-o ao Museu Nacional Machado de Castro, onde teve oportunidade de analisar em pormenor uma viola construída em meados de oitocentos por José Rodrigues Bruno, na célebre oficina do Paço do Conde, na Baixa da cidade. Com a colaboração de Nelson Correia Borges, docente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e figura de proa na defesa da revivificação de práticas musicais populares da cidade de Coimbra, Meireles alargou o seu estudo a outros exemplares, saídos das oficinas de violaria conimbricenses do século XIX.
O jovem construtor, então em início de carreira, reconheceu nestas violas muitos dos atributos que procurava imprimir aos seus próprios instrumentos. Meireles refere-se à toeira como "a mais elegante e mais bem proporcionada" das violas portuguesas e destaca a seleção criteriosa das madeiras, das colas e dos vernizes utilizados na sua construção, a adequação da espessura dos tampos e das ilhargas, o equilíbrio na definição das formas e das proporções e a riqueza dos elementos decorativos.
Assumindo a intenção de se manter fiel às formas, às matérias primas e às técnicas de construção aplicadas nas oficinas conimbricenses do séc. XIX, Fernando Meireles encetou a manufatura de réplicas de violas saídas das mãos de violeiros como José Rodrigues Bruno, Joaquim Wladislau Bruno, António dos Santos e Augusto Nunes dos Santos. Neste projeto, contou com o acompanhamento e o incentivo de Jorge Gomes, professor de guitarra portuguesa na Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra, que conservava ainda na memória a sonoridade da viola toeira, que ouvira pela primeira vez numa visita à oficina de Raul Simões, na década de 1950.
Viola toeira construída por Fernando Meireles para a coleção de Manuel Louzã Henriques. Coimbra, 1986. Fotografias cedidas por Fernando Meireles
Plano para a construção de uma réplica de uma viola fabricada por José Rodrigues Bruno, em meados do séc. XIX. Acervo de Fernando Meireles
Um novo ciclo de revivalismo: novas abordagens (e velhas dúvidas) na construção e performance da viola toeira, no século XXI
A partir de meados da década de 2010 despontaram, na cidade de Coimbra, diversos projetos orientados para a revitalização da viola toeira. Este instrumento atrai, nos nossos dias, homens e mulheres de diversas idades e profissões, comprometidos com um processo de aprendizagem do saber-fazer que se inicia pela seleção das matérias-primas, passa pela manufatura e, em alguns casos, abre caminho à performance.
Em contraste com as iniciativas de revitalização da viola toeira empreendidas nas décadas de 1980 e 1990, profundamente enformadas por conceções de autenticidade e fidelidade histórica, muitos dos atuais tocadores têm vindo a favorecer a experimentação de distintas técnicas de execução musical e a inscrição da viola toeira em novos domínios de prática musical. Esta recontextualização contribui para estimular um intenso e estimulante debate entre músicos, construtores e investigadores.
Entre outros assuntos, a discussão passa pela definição da sonoridade ideal para a viola toeira. Nesta matéria, as opiniões divergem. Devem os construtores e tocadores manter-se fieis às cordas de latão utilizadas nas velhas violas, ou promover a sua substituição por cordas de aço, em linha com o que sucede contemporaneamente com a generalidade dos cordofones dedilhados? Qual é o impacte desta atualização nas propriedades tímbricas da viola toeira? E de que modo influi na própria construção do instrumento no que respeita, por exemplo, ao barramento interno e aos mecanismos de afinação?
Estas e outras questões justificaram uma nova visita à oficina de Fernando Meireles. Uma das violas que, em encontros anteriores, aguardava restauro, pendurada sobre o quadro de ardósia da oficina do Mestre Meireles, tinha, entretanto, ganhado voz.
Estava criada uma oportunidade singular para observar e ouvir uma viola construída pelos famosos irmãos Bruno, numa das mais conceituadas oficinas de violaria conimbricenses do século XIX. Generosamente, Meireles partilhou os seus conhecimentos sobre as particularidades organológicas da viola toeira. Falou sobre o encordoamento e a afinação desta viola, que fez soar, para ilustrar o timbre característico que, na sua opinião, ditou a denominação toeira. É este saber de experiência feito, construído ao longo de décadas de dedicação ao seu ofício, que Fernando Meireles partilha, de viva voz, no registo sonoro que acompanha este artigo.
Pormenor da boca e da etiqueta de uma viola construída na oficina de Joaquim Wladislao Bruno & Irmão, restaurada por Fernando Meireles. Associação Académica de Coimbra, setembro de 2020