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Democratizar a Genealogia: desvendando o projecto “Genealogia sem segredos”

(Artigo 3)

Francisco Queiroz
Historiador de arte e mentor do projecto “Genealogia sem segredos”

Há precisamente dez anos, num grupo de entreajuda sobre Genealogia nas redes sociais, anunciei a preparação de uma formação com características ligeiramente diferentes daquelas que haviam sido leccionadas em anos anteriores por outros genealogistas, com a particularidade de a nova formação vir a ser apoiada por um manual especificamente concebido.

Vicissitudes várias fizeram com que o livro “Descubra as suas origens”, escrito em parceria com a historiadora Cristina Moscatel, tivesse sido publicado apenas no Outono de 2016, pela editora “A Esfera dos Livros”. Por conseguinte, a primeira formação que dei sobre Genealogia decorreu somente em 2017.

Na verdade, não foi bem a primeira experiência formativa em Genealogia, pois tive a honra de participar, como um dos oradores convidados, no 1.º Curso de Pós-graduação em História da Família, realizado na Universidade Moderna do Porto. O tema que então abordei foi o da tumulária familiar. Estávamos em Janeiro de 2002. O perfil mais comum de quem, nessa época, participava como aluno; o próprio perfil de quem então fazia Genealogia, eram bem diferentes do que hoje sucede. Estávamos nos tempos iniciais do fórum “Genea” (posterior “Geneall”), que foi talvez o projecto de Genealogia mais importante em Portugal na primeira década do Século XXI. Tinha quase tudo para continuar a sê-lo na década seguinte, mas foi esse “quase” que ditou precisamente o contrário: hoje, quem começa a pesquisar uma qualquer família portuguesa, já raramente elege o Geneall como sítio de pesquisa preferencial.

Dir-se-á que a Genealogia, efectivamente, democratizou-se. Arriscando um paralelismo algo redutor com a nossa própria História, a Genealogia como que passou do seu Antigo Regime, cingida a pergaminhos e a panegíricos, a uma espécie de Monarquia Constitucional, nela passando a campear também famílias e figuras mais aburguesadas que, pela sua fortuna ou feitos, logravam ser merecedoras de pesquisa publicada. Apesar desse alargamento de âmbito, ainda há pouco mais de uma década quase todos os genealogistas portugueses se conheciam entre si, pessoalmente, por e-mail, ou meramente por conversa no já aludido fórum.

Hoje, em 2024, a maior parte dos que fazem pesquisa genealógica não só não se conhecem entre si, como nunca entraram num arquivo. Atrevo-me até a acrescentar: actualmente, um pequeno – mas crescente – grupo de pessoas que são pagas para prestarem serviços que se enquadram na Genealogia, nunca entraram num arquivo.

Maria da Estrela Tavares Pacheco, nascida em Ponta Delgada a 2 de janeiro de 1896 (Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, Registo de bilhetes de identidade)

A Genealogia, efectivamente, democratizou-se em Portugal, mas foi perdendo as suas referências e tem seguido um rumo algo errático. Negócio já global, em que o valor das bases de dados mede-se pela quantidade e não pela “qualidade” dos indivíduos nelas mencionados, e muito menos pela fidedignidade desses dados, a Genealogia actual é também o reflexo das motivações daqueles que a procuram usar. E as motivações são hoje muito mais numerosas e heterogéneas: desde a busca pelas raízes, até à mera certidão que permite obter a nacionalidade portuguesa.

Passámos a ter uma Genealogia de matriz mais tradicional como que afogada, no meio de práticas genealógicas que, em muitos casos, desconsideram quem eram, em que se destacaram, ou o que deixaram os nossos ancestrais; desconsideração essa que tende a emergir sobretudo a partir do momento em que determinado documento encontrado serve cabalmente para provar (ou comprovar) o propósito último da pesquisa. E os propósitos estranhos a essa Genealogia “clássica” são hoje muito mais numerosos do que eram num passado recente, ao ponto de colocarem vários desafios difíceis, alguns dos quais órfãos de quem os queira, ou possa, resolver. A questão da formação é um deles.

A Genealogia não está representada em Portugal com qualquer curso superior e, na maioria dos cursos de História, ignora-se até a Genealogia como disciplina. A única associação nacional de genealogistas digna desse nome é completamente desconhecida da vasta maioria dos que hoje pesquisam famílias portuguesas. Bastaria este esboço de cenário para se concluir que, dentro da Genealogia em língua portuguesa, há hoje quase mundos paralelos, que só se tocam em grupos de entreajuda nas redes sociais. São fundamentais estes grupos: dentro da História, a Genealogia é talvez a disciplina mais eminentemente colaborativa. Porém, mesmo nos grupos mais bem administrados, o efémero predomina, forçando à repetição “ad nauseam” daquilo que deveria ser óbvio. Nesses tão necessários grupos, onde é lei a boa vontade de quem responde aos nossos apelos, as informações incorrectas e as estratégicas de pesquisa menos válidas aconselhadas como panaceias, nem sempre são cabalmente desmontadas. São grupos onde os palpites imperam e onde a busca de respostas esbarra quase sempre numa grande dúvida, de quase impossível esclarecimento: aquilo que nos respondem ou nos sugerem, será mesmo confiável?

Hoje, a inteligência artificial gera “livros de família” a partir de árvores genealógicas; ficheiros que, de livros, têm somente o grande número de páginas. Hoje, há quem se apresente como profissional da Genealogia para fazer uns “livros de família” que pouco diferem daqueles que são gerados pela inteligência artificial. E há hoje, sobretudo, muitos interessados em pesquisar os próprios antepassados que se sentem perdidos logo à partida: tudo parece fácil, com tantas ferramentas e tanta informação a partir do conforto do sofá de casa; tantas bases de dados; tantos espaços virtuais de entreajuda activos. Ao mesmo tempo, quem começa depara-se com tantas fontes por conhecer, tão grande dispersão da informação, e tanta informação imprecisa que se vai replicando na Internet sem controlo.

É sabido que, quando o mundo académico não é capaz de integrar e certificar uma disciplina séria, tornam-se ainda mais necessárias outras referências de confiança que respaldem uma prática criteriosa dessa disciplina. Ora, apesar de haver alguns grupos de entreajuda melhores do que outros, profissionais de Genealogia mais capazes do que outros; em Portugal falta uma entidade idónea que tutele, que arrume e clarifique. Falta, por exemplo, uma associação suficientemente prestigiada e ampla que faça a certificação da prática genealógica profissional, estabelecendo quais os critérios para se considerar alguém como genealogista, e reconhecendo formalmente quem, sendo sócio, pretenda obter reconhecimento por cumprir esses pré-requisitos. Falta uma instituição de referência com publicações próprias e de grande qualidade na área da Genealogia e História da Família, estabelecendo a fasquia para o que deve ser um livro sobre a história de uma família, necessariamente da autoria de quem pratique a disciplina da História e tenha formação académica para isso.

À falta de respaldo académico, à falta de instituições idóneas suficientemente abrangentes e centradas nos problemas actuais da Genealogia, não há em Portugal quem represente a disciplina e a regule, dentro do possível. Os grupos de entreajuda não têm, nem podem ter, essa missão, além de estarem geralmente imbuídos de um dos mais danosos preconceitos ainda subsistentes sobre a Genealogia: a de que só é uma actividade nobre (num sentido lato), quando é feita por quem pertence à família que está a ser pesquisada; passando a ser mero mercantilismo quando é feita por quem não pertence a essa família, mesmo que se trate do melhor dos profissionais. Este preconceito leva a que, na maior parte dos casos, quem é pago para fazer pesquisa genealógica, opte por não assumir que o faz, havendo várias supostas empresas de Genealogia baseadas em Portugal que não são mais do que uma ou duas pessoas a trabalhar isoladamente em regime pós-laboral, escondendo a sua identidade; por vezes recorrendo ao voluntarismo de muitos, nos grupos de entreajuda, para – sem revelar a finalidade dos pedidos de ajuda – conseguir concluir as suas tarefas com algum sucesso.

A democratização da Genealogia tem ocorrido muito rapidamente, não só em Portugal. Embora esteja a chegar à sua idade adulta, enfrenta claras dores de crescimento. Como não existe uma entidade “reguladora” da Genealogia, também não há como fazer, à partida, a destrinça entre: o que é oneroso mas tem qualidade e utilidade, permitindo poupar tempo e obter mais conhecimento; e o que é oneroso mas não tem credibilidade, dando a ideia de nada mais haver que possa interessar, além dos resultados apresentados, muitas vezes enviesados e feridos de falta de devida interpretação histórica. Citando uma das poucas frases que vale a pena citar regularmente: “Para dizer asneiras, bastam os profissionais”.

Ironicamente, o apelo ao “faça você mesmo” – que é grande parte do fascínio dos grupos de entreajuda de Genealogia – não escapa à contradição de se considerar indesejável a divulgação de tudo o que sejam ferramentas pagas que capacitem melhor os seus membros a fazerem bem “por si mesmos”. Ainda há pouco tempo, num desses grupos, alguém partilhou a capa do livro “Descubra as suas origens” com o seguinte comentário: “Como é que só agora tive conhecimento deste manual”?

Como co-autor do referido manual, não posso deixar de ser defensor do “faça você mesmo”, conquanto quem o faça tenha consciência de como se posiciona face à Genealogia: ser-se muito experiente na pesquisa genealógica sem se ter formação académica em História, está muito mais próximo do que se julga do ser-se absolutamente inexperiente na pesquisa genealógica tendo essa formação académica de base.

Tudo o que expus até este ponto enquadra a minha missão como formador de Genealogia, todos os anos, sob a capa do projecto “Genealogia sem segredos”. Comecei por propor um curso de introdução, essencialmente destinado a dar a conhecer todas as principais fontes disponíveis para a Genealogia e História da Família, incidindo sobretudo nas fontes alternativas aos registos paroquiais. Este curso de introdução abarcava (e abarca) também a questão da interpretação dos dados contidos nessas fontes, à luz dos costumes de outras épocas.

Em pouco tempo, percebi que não era suficiente dar a conhecer melhor as fontes e ajudar a interpretar os dados nelas contidos, pois muitos formandos queriam mais. Em concreto, tinham dificuldade em dominar os procedimentos de pesquisa na Internet e desconheciam muitas das mais úteis bases de dados. Quando até as conheciam já quase todas, geralmente ignoravam os seus “recantos” e fragilidades, não sabendo como extrair delas o máximo de informação relevante. Propus então uma segunda formação sobre Genealogia, mais prática e especificamente dedicada à pesquisa “online”, nela incluindo também o melhor modo de organizar e partilhar dados e de aproveitar os recursos disponibilizados pelas grandes empresas internacionais fornecedoras de serviços genealógicos.

Desde 2017 e até ao Outono de 2024, o curso de introdução já o tinha leccionado 31 vezes: 16 vezes presencialmente – nas cidades de Lisboa, Porto, Faro, Ponta Delgada, Leiria, Braga, Gaia, Lagos, Penafiel, Felgueiras, Horta e Vila Franca de Xira – e 15 vezes à distância através do Instituto CRIAP. Quanto ao curso sobre pesquisa “online”, mesmo sendo bem mais recente, já o ministrei 6 vezes: 2 vezes presencialmente (em Lagos e em Felgueiras) e 4 vezes à distância através do Instituto CRIAP.

São, pois, já 37 as formações sobre Genealogia dadas em menos de oito anos. Creio que esta marca me torna a pessoa que maior número de formações sobre Genealogia deu em Portugal; a pessoa que deu formações de Genealogia num maior número de locais do país; a pessoa que, em Portugal, teve maior número de formandos de Genealogia (e provenientes de um maior número de países); e, para já, ainda o único formador em língua portuguesa que dá regularmente formação certificada de Genealogia à distância.

Como este não é o momento de dormir sobre os louros, está já em preparação uma terceira formação sobre Genealogia, tendo como objectivo aprofundar o tópico que geralmente desperta maior interesse nas formações: o dos apelidos, nomes e alcunhas. E seguirei a mesma metodologia que deu origem ao próprio projecto “Genealogia sem segredos”: a formação será acompanhada de um outro livro orientado para a prática da pesquisa; um manual para capacitar ainda mais quem faz Genealogia.

«Faço Genealogia e nunca precisei de formação ou de um manual para isso» – Esta é uma frase que, com variantes, se lê algumas vezes em grupos de entreajuda, à mistura com outras frases em forma de conselho aos mais inexperientes que, sem citarem a fonte, claramente decalcam aquilo que é proposto no manual “Descubra as suas origens”. Sim, não é para todos a consciência da importância do saber mais para descobrirmos mais e interpretarmos melhor. Muitos só se apercebem do quanto não sabiam depois de passarem por esse processo.

«Se não está “online”, não nos interessa». – Assim respondia alguém, num grupo de entreajuda, em comentário a um tópico sobre fontes alternativas para pesquisa genealógica. Trata-se de uma frase lapidar, que diz muito sobre os desafios que a Genealogia enfrentará nos próximos anos. Ora, para que a democratização da Genealogia não redunde numa ditadura de bases de dados “online” e de conhecimento (des)organizado pela inteligência artificial, é necessário mais sentido crítico e menos “segredos” quanto à prática genealógica. Acima da democratização da Genealogia, deverá estar uma maior qualidade na nossa ainda jovem “democracia genealógica”.

Francisco Queiroz — Historiador de arte e mentor do projecto “Genealogia sem segredos”