Quem em finais do século passado consultasse uma lista telefónica do concelho de Guimarães iria encontrar apelido centenas de pessoas “Abreu”. Poderá ser temerário afirmar que toda essa gente teria um antepassado comum com esse apelido no concelho de Guimarães. Temerário, mas não absurdo. Aos descendentes deste tronco comum que usaram Abreu como apelido juntam-se os afilhados e criados dos diversos ramos desta família que, ao longo dos séculos, podem ter adotado o apelido dos seus padrinhos e patrões, uma prática que muito embora não fosse genérica por vezes acontecia. A estes juntam-se também aqueles que não tendo “Abreu” como apelido descendem desta família.
Quando no início do século XVI Pedro Gonçalves e Isabel de Abreu granjeavam o Casal do Outeiro (em São Martinho de Candoso), talvez soubessem que a fertilidade e dimensão das terras que possuíam poderia estar na origem de um processo de ascensão social ou, pelo menos, de um futuro que iria garantir a manutenção de um determinado estatuto social[1]. Como nos explica magistralmente Nuno Daupias d’Alcochete em “Principalidade”, “o jornaleiro que, mercê de circunstâncias favoráveis, tinha conseguido atingir o estado de lavrador ou de oficial de um ofício mecânico, ambicionaria deixar aos seus bens de raiz que lhes assegurassem a consideração pública. Porque não um ou mais netos ordenados padres? Isso dava projeção no meio. O neto que herdasse as fazendas podia já aspirar, mercê da influência dos irmãos eclesiásticos, a ser tido como uma das boas famílias do lugar. Os filhos deste último entrariam para a governança do concelho ou seriam chamados aos postos da milícia. Para estes cargos era já exigida nobreza ou pelo menos nível social. As aspirações seguintes dos bisnetos seriam a carta de Familiar do Santo Ofício, ordens sacras para um dos seus filhos, a carreira das armas (…) para outro, uma licenciatura e um lugar de letras para um terceiro. O segundo, o militar, poderia aspirar vir a receber, por exemplo, o hábito de Cristo (…). De regresso ao seu concelho, este oficial (…) ascenderia nos quadros da milícia e nos da governança. Se o processo evolutivo não se alterar os três terceiros netos do nosso jornaleiro serão desta forma já membros da nobreza local, pessoas principais entre os seus (…). Bem entendido, a evolução poderá ser mais rápida (…) se, por exemplo, a meio do processo evolutivo, um dos membros for para Lisboa ou para o Porto e negociar no grosso trato. Uma carta de Familiar, um hábito de Cristo (…) irão acelerar a promoção deste negociante. A seu filho, feita a prova de que a mercancia do pai era honrada e que os avós eram lavradores que viviam de sua fazenda, o de pugnar a carta de armas. Os cargos da governança, os ofícios de escrivania ou de tabelionato forma de todos os tempos um meio simultâneo de adquirir e conservar nobreza (…). Exercer os cargos municipais, ser escrivão do tribunal ou da provedoria, ser tabelião, ser funcionário régio em suma, equivalia a ser pessoa em destaque entre os principais do concelho (…)”. Eram estes os caminhos para a ascenção social.
Voltemos ao Casal do Outeiro.
Pedro Gonçalves e Isabel de Abreu foram pais de Salvador Gonçalves, Catarina de Abreu e de Francisco Gonçalves. É de notar que em todos os ramos, isto é, nos netos de Pedro Gonçalves e de Isabel de Abreu, o apelido Abreu foi sobrevivendo, muito embora a via feminina pelo qual seguiu não o fizesse adivinhar.
Os filhos de Pedro Gonçalves e de Isabel de Abreu seguiram caminhos distintos. Francisco Gonçalves dedica-se ao ofício de sapateiro a sua irmã, Catarina de Abreu, casa com Miguel Pires, também sapateiro. Já por Salvador Gonçalves, de que falaremos adiante, fica a ligação a S. Martinho de Candoso e à terra pois casa com uma herdeira do Casal do Reboto naquela freguesia (no que terá sido um casamento de pessoas de semelhante condição social e económica).
Detenhamo-nos um pouco em Francisco Gonçalves, sapateiro e na sua irmã, Isabel de Abreu, casada com Miguel Pires, sapateiro. Estes irmãos não foram apenas ou fundamentalmente gente que forçada pela perda da posse efectiva da terra (para o irmão mais velho, Salvador Gonçalves) se dedica a um ofício mecânico. São pessoas que deixam a quinta paterna em Candoso para se fixarem na Vila de Guimarães com algumas garantias dadas pela parte a que tinham direito no Casal do Outeiro. Em 1573[2], Isabel de Abreu, viúva de Pedro Gonçalves, faz contas com seus filhos e genros a propósito “da fazenda que ficou de seu marido Pedro Gonçalves”. Tal facto significa que os seus filhos e genro, sapateiros estabelecidos na Vila de Guimarães, estariam providos de meios para dar bom seguimento ao seu ofício e a negócios associados o que, com trabalho e sorte, lhes permitiria reposicionarem-se socialmente num curto espaço de tempo.
Para este ramo de sapateiros vale a pena olhar para a descendência de Miguel Pires e de Catarina de Abreu que parece encaixar-se perfeitamente no modelo encontrado por Daupias d’Alcochete. A sua filha Violante de Abreu casa com Gonçalo Fernandes, sapateiro, filho de lavradores proprietários[3]. O seu filho, João de Abreu, ascende ao tabelionato e casa com Maria de Barros (oriunda de uma família de Cristãos Novos). O seu neto, Jerónimo de Abreu, também tabelião, casa com Isabel Melo da Silva e, com este casamento e nesta fase, a família já se encontra no seio da nobreza ordinária. A parte que em finais do século XVI lhes coube das terras do Casal do Outeiro e o impulso que essas terras ou dinheiro lhes deu nos ofícios e no comércio foram o suficiente para que, logo no século XVII, se habilitassem no tabelionato, um cargo de prestígio que rapidamente abriu as portas a este ramo para um casamento com gente de nobreza reconhecida.
Pela descendência de Salvador Gonçalves de Abreu, filho de Isabel de Abreu e de Pedro Gonçalves, os primitivos senhores do Casal do Outeiro em Candoso, segue a descendência do ramo desta família que manteve uma maior ligação à terra e a São Martinho de Candoso, bem como às freguesias vizinhas. Na descendência de Salvador Gonçalves de Abreu e de sua mulher Joana Silva (do Casal da Várzea em S. Martinho de Candoso) vamos encontrar uniões com diversos proprietários e proprietárias de casais da mesma freguesia e das freguesias vizinhas e, nas gerações seguintes, ligações à Vila de Guimarães e ao seu comércio e ofícios.
A propriedade mãe, o Outeiro, manteve-se sempre no seio da principalidade da freguesia de Candoso, em posse de lavradores abastados, que trabalhavam bens próprios, por si e seus criados, condição que à luz dos critérios de mobilização social, excluía a condição mecânica, motivo de exclusão no acesso aos patamares da nobreza do reino.
Violante de Abreu, filha de Sebastião Gonçalves e de sua mulher Joana da Silva, nascida no Outeiro cerca de 1548, aí falecida a 22-out-1599, casou ca. 1577 com Francisco Fontes, nascido no casal de Bouçós, Barrosas (Santa Eulália), Vizela, ca. 1545, falecido no casal do Outeiro, Candoso (São Martinho), 04-maio-1630, filho de Francisco Pires e de sua mulher Catarina Gonçalves já defuntos moradores que foram em Bouçós da freguesia de Santa Eulália de Barrosas. Deste casamento sucedeu na propriedade paterna Francisco de Abreu, nascido no casal do Outeiro, Candoso (São Martinho), Guimarães, 30-mar-1592 e casado com Apolónia Luís. Estes, dotam a propriedade do Outeiro em sua filha Maria de Abreu num casamento por cambo que a casa do Outeiro faz com a casa do Préstimo, em Santiago de Candoso, também casa abastada da principalidade entre lavradores. Assim, Maria de Abreu casa a 06-jun-1666 com Francisco Dias, sucedendo no outeiro, e sua irmã mais nova Ana de Abreu casa com Domingos Dias, irmão de Francisco Dias, e sucede numa das vidas do casal do Préstimo onde fixa residência, na descendência de ambas entroncam muitas importantes linhagens[4]
Continuando a sucessão da propriedade mãe, o Outeiro, Francisco Dias e sua esposa Maria de Abreu, nomeiam a sucessão no primogénito, António de Abreu, aí nascido, batizado a 08-dez-1671, casado em Silvares, a 20-abr-1704, com Jerónima Vaz, nascida no casal de e Alpipe da Laje, batizada a 10-mar-1665, filha de João Álvares e de sua mulher Catarina Jorge.
A estes, sucedeu ma propriedade do Outeiro de Baixo, seu filho, Domingos de Abreu, nascido a 01-ago-1706, casado em Silvares (Santa Maria), Guimarães, a 23-abr-1727, com Ana Maria da Costa, natural da fazenda da Murta, filha de Jerónimo Rodrigues e de sua mulher Domingas da Costa. Dos seis filhos havidos deste casamento, todos estabelecem consórcios com as casas principais de diversas freguesias do concelho, Maria Josefa de Abreu, primogénita, vai casar a Bouçós, com Manuel Fernandes Branco lavrador da principalidade, senhor do casal de Bouçós e de ¼ do Assento de Caldelas, filho de Santos Gomes e de Maria Fernandes (e irmão do padre Bento Fernandes Branco). António de Abreu, secundogénito, casará a 24-set-1791, também em Caldelas, com Francisca Teresa da Conceição, filha de João Ribeiro e de Josefa de Sousa do casal de Alvite. Ana Maria da Costa, terceira filha, casará a 09-jan-1765, com Domingos Coelho de Araújo, natural de Santa Maria de Oliveira, Vila Nova de Famalicão, filho de Domingos Coelho e de sua mulher Josefa de Araújo, senhores do casal de Real, propriedade da principalidade. Luísa Josefa de Abreu, quarta filha, casa a 12-jun-1766, com António Mendes de Araújo, moradores nos moinhos do Rizo, em Candoso (São Martinho), filho de Cipriano de Araújo lavrador e moleiro e de sua mulher Jerónima Mendes, casa que recebeu herança brasileira de Francisco Mendes de Araújo, solteiro, morto no Rio de Janeiro, irmão do noivo[5]. Do quinto filho, Manuel, ignoramos o percurso (se sobreviveu à infância, é bem provável que tivesse saído da terra, quem sabe atravessado o Atlântico). Por último, o sexto filho, foi eleito para suceder na propriedade paterna, João de Abreu, lavrador abastado da principalidade, nascido a 20-maio-1740, casou na mesma freguesia a 12-dez-1776, com Maria Josefa de Abreu, nascida no casal do Outeiro de Cima, propriedade congénere, filha de António de Abreu e de sua mulher Josefa Maria de Abreu, esta última, sucessora no Outeiro de Cima que herdara de seus pais Francisco de Abreu e de sua mulher Catarina Pereira. Francisco de Abreu era filho de João de Abreu[6] e de sua mulher Maria Vaz, senhores do casal do Outeiro de Cima.
Entre os filhos de João de Abreu e Maria Josefa de Abreu destacam-se: José Joaquim de Abreu Cardoso proprietário abastado e Cavaleiro da Ordem de Cristo e o padre Domingos António de Abreu.
A divisão da casa do Outeiro em Outeiro de Cima e Outeiro de Baixo, havia ocorrido na descendência de Francisco Fontes e sua mulher Violante de Abreu, que dotam dois dos seus filhos com a mesma propriedade, dividindo-a em Outeiro de Cima e Outeiro de Baixo. Para a filha a sua filha Ana de Abreu casada com Manuel Fernandes segue o Outeiro que casam dois dos dois filhos da propriedade, o Outeiro de Cima fica para sua filha Ana de Abreu, casada com Manuel Fernandes; o Outeiro de Baixo fica para seu irmão Francisco de Abreu casado com Apolónia Luís. A propriedade volta a unir-se no casamento de João de Abreu, senhor do casal do Outeiro de Baixo (descendente de Francisco de Abreu e de Apolónia Luís), com Maria Josefa de Abreu, senhora herdeira do casal do Outeiro de Baixo (descendente de Maria de Abreu e de Manuel Fernandes).
A João de Abreu, lavrador abastado da principalidade e a sua mulher Maria Josefa de Abreu, sucede na unida propriedade do Outeiro o capitão José Joaquim de Abreu Cardoso, cavaleiro da Ordem de Cristo. José Joaquim de Abreu Cardoso, senhor do Outeiro, foi Alferes da 6ª Companhia do Regimento de Milícias de Braga durante a Guerra Peninsular. Mais tarde seria Capitão (provavelmente de Milícias), Cavaleiro da Ordem de Cristo e, por ter herdado ou adquirido a quinta do Reboto, em Candoso (São Martinho) ficou conhecido como o Capitão do Reboto. Foi Vereador e Presidente da Câmara de Guimarães e Administrador do Concelho[7].
O senhor do Outeiro, José Joaquim de Abreu Cardoso, proprietário abastado e Cavaleiro da Ordem de Cristo, nasceu na propriedade de seus maiores a 18-fev-1786. Casou, em São Sebastião, Guimarães, a 21-abr-1822, com Dona Custódia Miquelina da Costa, nascida idem, a 01-ago-1802, filha legítima de Diogo Martins da Costa, importante negociante de lã e sedas da vila de Guimarães e de sua mulher Dona Rosa Maria da Costa Mendes.
Deste matrimónio nasceu a 02-out-1825, a Senhora Camília Rosa de Abreu Cardoso na casa do Outeiro, de quem foi herdeira e senhora. Casou em Penso (Santo Estêvão), a 21-abr-1858, com José Narciso de Araújo Moura e Castro, filho de António Avelino de Araújo e Castro e de sua mulher Ana Maria dos Anjos Moura e Chaves.
A este, sucedeu na sua quinta e casa do Outeiro, seu filho, Eduardo Augusto de Araújo Moura e Castro, nascido na quinta do Ribeiro, em Brito (São João), a 13-jan-1860. Casou em Ronfe (Santiago), a 19-jun-1882, com Dona Ludovina Lopes Cardoso, filha de José Lopes Cardoso, natural de Ronfe (São Tiago) e de Serafina Rosa, natural de Brito.
O Outeiro continua nesta geração, pelo filho dos anteriores, José Firmino de Araújo Moura e Castro, que casou em Silvares (Santa Maria), a 23- nov-1905[8], com Dona Maria Ribeiro de Abreu, de quem obteve dispensa no quarto grau de consanguinidade, natural, esta, da abastada e rica casa do Sendelo, filha de António Ribeiro de Abreu natural desta freguesia e de Dona Ana Ribeiro natural da freguesia de São João de Ponte, que também traziam sangue dos Abreu[9].
No século XX a quinta do Outeiro, entra na posse da filha dos anteriores, Dona Serafina Rosa de Moura e Castro, senhora das quintas do Ribeiro em Brito e do Outeiro em Candoso, nascida no Ribeiro a 22-dez-1908, casada idem, a 24-mar-1927, com Alfredo Correia da Cunha Guimarães.
São vários os caminhos dos Abreu em Guimarães. Casos de grande ascensão social (como vimos no caso da descendência de Miguel Pires e de Catarina de Abreu), manutenção do estatuto social (através da manutenção da propriedade principal, o Casal do Outeiro, na família, mais precisamente na descendência de Violante de Abreu), gente que deixou Guimarães em busca de uma vida melhor (saindo ao longo dos séculos para as grandes cidades e para o Brasil) e uma plêiade de situações mais ou menos felizes em que o amparo da terra e dos parentes bem como o exercício (com mais ou menos sucesso) do comércio e dos ofícios terá sido determinante para a fixação das pessoas (e do apelido) no concelho de Guimarães.
Como já foi referido, o casal do Outeiro seguiu por via feminina, na pessoa de Violante de Abreu, que ali deixaria grande geração. O seu irmão, Pedro Gonçalves de Abreu, viria a contrair matrimónio com Maria Mendes, herdeira do importante casal de Bugalhós na freguesia de Mascotelos. Deste casal nasceria Senhorinha Mendes de Abreu, casada em primeiras núpcias[10] com Luís Fernandes, senhor do Casal do Assento de Nespereira.
Dos filhos de Luís Fernandes e Senhorinha Mendes de Abreu vamos centrar-nos em Luís de Abreu pois é ele quem herda o Casal do Assento. Luís de Abreu casa a 28 de dezembro de 1663 com Catarina de Novais de Campos, filha legitimada[11] do Padre Cosme Mendes de Campos, Vigário de Santa Eulália de Nespereira (que celebrou o casamento da filha) e de Ana Mendes, solteira, do casal de Fofe, Mesão Frio (São Romão). Catarina Novais de Campos não era possuidora de nenhum casal ou propriedade. É por isso provável que o seu pai, o Padre Cosme Mendes de Campos, a tivesse dotado com uma quantia que de alguma forma se equiparasse a valor do que Luís de Abreu trouxe para o casamento (referimo-nos ao Casal do Assento e a outras propriedades rústicas em Nespereira). Muito embora nada se saiba sobre o dote de Catarina Novais de Campos, sabe-se alguma coisa sobre o posicionamento social da sua família. Os Novais de Campos gozavam de algum prestígio social na região uma vez que pelo ramo Novais estavam ligados a uma conhecida família de proprietários (no concelho de Montelongo, hoje Fafe) e pelo lado Campos descenderiam de Brás ou Baltazar de Campos, Capitão-Mor do Couto de Refojos de Basto[12]. A influência do Padre Cosme Mendes de Campos, Vigário de Nespereira, na freguesia não terá sido alheia ao arranjo deste casamento. Convirá também recordar que o Padre Cosme Mendes de Campos tinha um percurso assinalável como eclesiástico (foi pároco de Estorãos, Arões, etc.) e que outros familiares próximos que viviam em Guimarães[13] podem ter contribuído de alguma forma para que este enlace chegasse a bom porto.
Sabemos que Luís de Abreu e Catarina Novais de Campos viviam dos proventos do seu Casal do Assento (que entrou formalmente na sua posse em 1665) e que chegaram a adquirir terras na freguesia (a propriedade de Alvarinho). Tinham então terras e criados e seria de esperar que tivessem uma vida folgada não fosse o caso de Luís de Abreu contrair um empréstimo junto de Paulo Borges (da Quinta de Laços)[14] o que pode indiciar apenas alguma necessidade ocasional (para a concretização de algum negócio) ou dificuldades financeiras mais profundas.
Dos seus filhos, apenas o mais velho, Gaspar de Abreu, vai manter o apelido paterno. As outras filhas, Isabel, Maria, Paula e o filho Inácio usam o apelido materno, Novais de Campos (o que parece comprovar a importância desta família). Pouco sabemos da infância desta geração. Contudo, através da análise da assinatura estilizada de Inácio Novais de Campos, percebemos que terão tido algum tipo de educação.
Como estratégia de reprodutibilidade e ascensão social, Luís de Abreu e Catarina Novais de Campos terão usado duas táticas diferentes. Para o filho mais velho, Gaspar de Abreu, arranjam casamento com Maria Alves Salgado que trás para a família um casal em Sezim (na mesma freguesia) que pertencia aos seus pais[15]. O casamento foi celebrado em Nespereira a 2 de dezembro de 1709. Muito embora não tenhamos encontrado o dote deste casal é legítimo presumir que Gaspar de Abreu se tenha dotado com uma maquia significativa (que, de alguma forma, se equiparasse ao casal de Sezim do qual tomaria posse em 1727).
Para as meninas, Luís de Abreu e Catarina Novais de Campos traçaram uma estratégia diferente: arranjaram-lhes casamentos com descendentes da pequena nobreza. Em 1690 contratam o casamento da sua filha Isabel com Manuel Ferreira de Miranda, oriundo de Vila Cova (em Fafe). Casaram na Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães. Viveram algum tempo em Nespereira. Tiveram descendência e fixaram-se em Vila Cova, no lugar da Pereirinha onde Manuel Ferreira Miranda viria a morrer em 1720. Manuel Ferreira de Miranda era filho de João Ribeiro e de sua mulher Catarina Ferreira de Miranda, esta nascida em Vila Cova filha de Sebastião Navarro, cavaleiro fidalgo, e de sua mulher Isabel de Miranda de Azevedo[16].
Maria casou a 30 de agosto de 1690 com Domingos da Silva, filho do célebre Abade da Lagiosa Manuel da Silva e Menezes[17] . De Domingos da Silva e Maria de Novais de Campos sabemos apenas que tiveram uma filha, Paula nascida em Nespereira.
Paula Novais de Campos viria a casar em Nespereira, a 20 de junho de 1701, com Miguel Leite Brandão, filho do Reverendo Rafael Leite Brandão[18] (que assistiu ao casamento do filho). Dotada com o Casal do Assento, a casa e propriedade onde viviam os seus pais, percebe-se que foi em Paula que os pais apostaram para consolidar e, quem sabe, ampliar o estatuto social da família bem como, segundo cremos, os amparar na velhice. Quando em 1709 nasce um neto, Miguel, as aspirações desta família e geração parecem garantidas. Contudo tal não se viria a verificar.
Algo de muito grave se terá passado no Assento de Nespereira. A 13 de janeiro de 1719 morre com todos os sacramentos no seu Casal do Assento Luís de Abreu. No seu assento de óbito nada de estranho há a registar. Apenas uma pequena curiosidade: o Padre, João Ribeiro Saldanha, fez questão de anotar o facto de Luís de Abreu ser seu “vizinho quasi de porta”, o que era verdade pois, tanto quanto julgamos saber, o Assento é o “casarão” que ainda hoje existe junto à Igreja paroquial de Nespereira.
O que viria a acontecer após a morte de Luís de Abreu marca o fim da normalidade que aparentemente se vivia no Assento de Nespereira e naquela família.
Paula morre no Assento em 1720, contudo o averbamento do seu óbito é feito apenas em 1725 a pedido do seu filho Miguel Leite [Brandão]. O seu marido, Miguel Leite Brandão, morre um ano depois, em 1721, “no convento dos Frades Jerónimos da Villa de Guimarães” onde era “comensal” e deixa por seu universal herdeiro António Vaz da Silva, do Casal de Arrochela em Nespereira. Tal como aconteceu com a sua mulher, o assento de óbito só é averbado em Nespereira em 1725.
A separação da mulher e o facto de, na prática, ter deserdado o seu filho mais velho, demonstram a gravidade da situação. O filho primogénito e herdeiro de Paula Novais de Campos e de Miguel Leite Brandão não desiste dos seus direitos. Deixa cair um dos apelidos paternos (assinará apenas Miguel Leite) mas mantém a vontade de lutar pelo que é seu por direito. Dá início a uma demanda em que procura anular o testamento do pai (ou pelo menos a parte que dizia respeito à sucessão no Casal do Assento). A Relação do Porto dá-lhe razão por sentença dada a 28 de julho de 1735. A privação dos rendimentos do Casal do Assento durante quase 15 anos bem como os custos do processo devem ter empobrecido consideravelmente esta família. Ainda assim o Casal do Assento continuou na posse da família e, em 1815, era propriedade de Manuel Leite de Abreu (que supomos ser bisneto de Miguel Leite)[19].
Até agora não foi possível saber o que esteve na génese deste conflito familiar que, ao que parece, terá afetado mais do que um ramo da família.
Em março de 1720 morre em Vila Cova (Fafe) Manuel Ferreira de Miranda, marido de Isabel Novais de Campos. Pelo seu assento de óbito conseguimos perceber que não teria grandes bens (o que se infere pela ausência de testamento). Em 1752 morre um dos filhos do casal, Inácio, a quem apenas se deu o sacramento da extrema-unção por “andar doudo há muitos anos”. Em 1758 morre Isabel. O registo de óbito dissipa qualquer dúvida sobre a condição social da família: Isabel “não fez testamento nem deixou nada por sua alma por ser pobre”.
A 28 de janeiro de 1759 morre em Nespereira Gaspar de Abreu[20] (filho de Luís de Abreu e genro de Miguel Leite Brandão). Como já foi referido, havia herdado de seu sogro um Casal em Sezim. Por isso é com surpresa que no seu assento de óbito se lê que “não fez testamento por ser pobre e por andar mendigando (…) enquanto pode e depois andaram seus filhos a ajudar a sustentar enquanto viveu”. À pobreza explícita no óbito junta-se a indiferença dos filhos que, do que se depreende da leitura do assento de óbito, deixaram que o pai se tornasse um mendigo só o tendo ajudado quando este ficou incapacitado. O casal em Sezim de que era senhor saiu das suas mãos em 1744 (tendo passado para Manuel de Freitas do Amaral e Melo, que o juntou a um outro casal no mesmo lugar[21]) e muito provavelmente, desse período em diante, Gaspar de Abreu caiu na pobreza. Sabemos que um dos seus filhos, André de Abreu, vivia na Vila de Guimarães onde devia dedicar-se ao comércio e aos negócios. Anos antes de Gaspar de Abreu perder a propriedade em Sezim, a mulher de André de Abreu terá recebido uma fortuna considerável de um parente com negócios no Brasil[22] o que deixou a família numa boa situação financeira. O facto de não ter ajudado o pai e ter permitido que este caísse na mendicidade sugere que havia um conflito entre Gaspar de Abreu e o seu filho André.
Anos antes, em 1730 morreu no Casal do Assento Catarina Novais de Campos, viúva de Luís de Abreu. Foi sepultada dentro da Igreja “junto ao altar de Santo António, debaixo do taburno e vieiras (…)”. Morreu no seu Casal do Assento de Nespereira no meio de um conflito familiar intenso. Supomos que ao fechar os olhos teria plena consciência que o sonho que um dia teve para a sua família estava já irremediavelmente perdido. Apesar de tudo o Assento ficou na família até meados do século XIX.
E o seu sangue ainda corre em Guimarães.
Francisco Brito — Investigador em História Moderna e Contemporânea
Rui Jerónimo Lopes Mendes de Faria — Professor e Investigador
NOTAS DE FIM
[1] Sabe-se pouco sobre a origem deste casal. Diz-se que uma nota manuscrita na margem de um nobiliário os associa à Torre de Grade (Arcos de Valdevez) mas não foi possível confirmar esta informação.
[2] AMAP. Notarial n.º 20Fl. 86 f. a fl. 87 f.
[3] Era filho de Amador Fernandes, senhor da Quinta de Riba de Ave (em S. Pedro de Riba d’Ave).
[4] Como exemplo referimos o 1º Visconde de Serpa Pinto, Alexandre Alberto da Rocha de Serpa Pinto, neto materno de Alexandre Alberto de Serpa Pinto e Joaquina A. da Silveira de Lacerda Pinto de Ataíde e Vasconcelos, bisneto de António de Serpa Pinto da Costa e de Ana Angélica Maria de Abreu (bisneta de Domingos Dias e de Ana de Abreu).
[5] Processo (Brasil,Maço 119,nº11) de 3.12.1763.
[6] Num rápido resumo da sequência do outro Outeiro, João de Abreu batizado a 08-nov-1648 fl. 57 v., casado com Maria Vaz, natural do casal de Mourilhe, em Silvares (Santa Maria), era filho de Pedro Fernandes de Abreu, senhor do Outeiro de Cima, casado a 21-abr-1637, com Ana Francisca. Pedro Fernandes de Abreu foi filho de Manuel Fernandes e de sua mulher Ana de Abreu, filha, esta de, Francisco Fontes e sua mulher Violante de Abreu, senhora herdeira da casa do Outeiro.
[7] Brito, Francisco, O Botequim do Vago-Mestre. Política e Sociedade na Guimarães oitocentista. Guimarães. ASMAV. 2011. pp. 112.
[8] AMAP: P- 1491, fl. 2 v.-3, n. º 4.
[9] O apelido Abreu chega a Sendelo, pela rica e abastada casa de Bugalhós de quem era senhor pelo casamento Pedro Gonçalves de Abreu e sua segunda mulher Marta Fernandes, pais de Maria de Abreu casada com Pedro Martins, senhor de Sendelo, por outro nome Silvares ou Golpilhais, estes foram pais de Jerónimo de Abreu, casado com Maria Bernardes, dos Ribeiro Bernardes da quinta da Portela, em São Jorge de Selho, que fizeram seguir a propriedade em seu filho Domingos de Abreu Ribeiro, casado na rica casa de Courelas de Cima, com Ângela Ribeiro de Andrade que trazia o sangue dos Andrade e Golias. A estes sucedeu na casa de Sendelo sua filha Josefa Maria de Abreu Ribeiro casada com António Ribeiro Salgado, negociante da vila de Guimarães. A estes, sucedeu seu filho José António Ribeiro de Abreu casado em Briteiros (São Salvador), com Josefa Maria de Barros, também nomeada Joséfa Maria Rodrigues de Passos, nascida na quinta da Telhada, cujos pais eram senhores da quinta de Passos e outras propriedades. Destes sucedeu na quinta de Sendelo, António José Ribeiro de Abreu casado com Antónia Maria, de Fermentões, que foram pais de João José Ribeiro de Abreu casado com Josefa Maria Pedrosa. Sucedeu-lhes no Sendelo, seu filho António José Ribeiro de Abreu, também nomeado António Ribeiro Salgado, casado em São João de Ponte, com Ana Ribeiro, estes pais de Dona Maria Ribeiro de Abreu, que segue non texto.
[10] Depois da morte de Luís Fernandes (em 1622) casou novamente com Gonçalo João, oriundo do casal do Moseiro de Nespreira, com geração.
[11] AMAP Notarial n.º 9-1-8-5-4 fls. 46. Nesta legitimação é determinado que os filhos legitimados podem ser “(…) herdeiros dos bens que lhes quiserem por suas mortes deixar ou em suas vidas doar e dotar possam haver de suas honras que o dito senhor a semelhantes legitimadas concede (…)”.
[12] Vale a pena determo-nos nos Novais de Campos e em Baltazar de Campos. Este seria muito provavelmente parente próximo de Diogo de Campos a quem, de acordo com Felgueiras Gaio (§ 4 MAIS CAMPOS), foram dadas armas em 1540 (Campos, Carvalhos, Borges). Um estudo genealógico de António de Vasconcelos Cirne, datado de 1796, dá-nos diversas informações fidedignas (e outras que convirá confirmar) sobre esta família. Os Novais seriam oriundos da quinta de Eira de Onega (ou Eiradonega) em Moreira de Rei, Fafe e os Campos de Refojos de Basto, sendo Ana Mendes de Campos, mulher de Cosme de Novais, filha legitimada do já referido Capitão Baltazar de Campos (individuo que seguramente pertenceria à nobreza da região de Basto). Terá sido do casamento de Ana Mendes de Campos e Cosme de Novais a dar origem ao apelido Novais de Campos. Os Novais de Campos seguiram vários caminhos desde que o apelido se constituiu no início do século XVII na sua quinta de Eira Donega. Ligados inicialmente à cobrança de rendas (no concelho Montelongo), ao serviço militar (em Marrocos), ao clero e ao comércio (Portugal, Brasil, Índia, etc.) os Novais de Campos estabeleceram-se ao longo dos séculos XVII e XVIII um pouco por todo o país entroncando em diversas famílias conhecidas e nobres. Por vezes, o apelido composto ia caindo e sendo recuperado conforme a condição social de cada ramo num dado momento (o que indicia que teriam bem presentes as suas origens). Já no século XVIII podemos vê-lo associado a famílias nobres de Alenquer, a uma pedra de armas em Azeitão (na Casa das Conselheiras) e em Cartas de Brasão de Armas passadas a membros desta família residentes no Brasil (sendo que nos exemplos referidos encontram-se representadas as armas dos Campos) e ainda na Casa da Torre em S. João de Ver em Santa Maria da Feira (onde estão representadas as armas dos Novais).
[13] Catarina Novais de Campos era sobrinha do Padre Gaspar Novais de Campos (vigário de Mesão Frio) e de Pedro de Novais de Campos (dado na já referida genealogia escrita em 1796 pelo seu descendente António de Vasconcelos Cyrne como residente em Guimarães e casado por 3 vezes, uma delas com Maria Rebelo de Faria “em a Villa de Guimarães”).
[14] Morais, Maria Adelaide Pereira de, Velhas Casas de Guimarães, Porto, Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da Família da Universidade Moderna do Porto, Volume1, p. 210.
[15] Livro dos Privileg. De N. S. Senhora da Oliveira in Boletim de Trabalhos Históricos. Guimarães. AMAP Volume V. pp. 22.
[16] Isabel Miranda de Azevedo era filha legitimada de David Miranda de Azevedo e de Margarida Álvares.
[17] Filho de Luís Cardoso de Menezes, 12º Senhor da Honra de Cardoso. Este Abade foi conhecido por ter diversos filhos e filhas naturais, sendo que uma das suas filhas, Mariana, viria a casar com António Cardoso de Menezes Barreto, seguindo nesta linha o Morgado do Paço de Nespereira.
[18] O Reverendo Rafael Leite Brandão era filho de Roque Martins Leite, homem que fez fortuna na Índia, Escudeiro Fidalgo e Cavaleiro da Ordem de Cristo e de sua mulher Maria Gomes Brandão (oriunda de uma família de Braga com antepassados no clero e na pequena nobreza). De acordo com o Nobiliário das Famílias de Portugal de Felgueiras Gaio (que omite a existência de Miguel Leite Brandão), o Reverendo Rafael Leite Brandão teve uma outra filha, Úrsula Machado Leite, que casou com o Capitão Custódio Machado de Oliveira, Senhor da Quinta da Oliveira em Landim, sendo este casal ascendente de várias famílias nobres da região.
[19] Livro dos Privileg. De N. S. Senhora da Oliveira in Boletim de Trabalhos Históricos. Guimarães. AMAP Volume V. pp. 21-22.
[20] A sua mulher, Maria Alves Salgado, morreu a 5.06.1745 em Sezim (o que demonstra que na altura o casal ainda vivia e possuía o Casal de Sezim). Teve um ofício de 10 padres e foi sepultada dentro da Igreja, na parede nascente junto ao altar de Nossa Senhora do Rosário.
[21] Estamos convencidos que a junção destes dois casais corresponde sensivelmente às propriedades da Casa de Sezim.
[22] Tanto quanto sabemos, José António da Silva Abreu ou José António de Abreu Bahia, filho de André de Abreu e de sua mulher Antónia Maria da Silva nunca exerceu nenhuma profissão, vivendo de rendimentos de alguns imóveis que possuíam na rua de Gatos em Guimarães. Rendimentos esses que permitiram que o seu filho mais velho José António Bahia se formasse em Direito em Coimbra já no início do século XIX.
Supomos que Antónia Maria da Silva terá sido herdeira de parte da fortuna do seu tio Alexandre da Silva Guimarães, “Brasileiro”, falecido em S. Paio em 1728. Alexandre da Silva Guimarães “Brasileiro” deixou como herdeiro o seu pai Domingos da Silva (que morreu em Guimarães, S. Paio em 1746) e terá sido após a morte deste que parte desta fortuna foi herdada pela sua filha Antónia Maria da Silva e por André de Abreu. Na família de Antónia Maria da Silva (os Silva Guimarães) podemos encontrar vários negociantes de grosso trato, com ligações ao Porto e ao Brasil (nomeadamente à Baía) dos quais se destaca João da Silva Guimarães Souto, mercador na Baía e Familiar do Santo Ofício.
BIBLIOGRAFIA
BRITO, Francisco, O Botequim do Vago-Mestre. Política e Sociedade na Guimarães oitocentista, Guimarães. ASMAV. 2011. pp. 112
MORAIS, Maria Adelaide Pereira de, Velhas Casas de Guimarães, Porto, Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da Família da Universidade Moderna do Porto, Volume 1.
«Livro dos Privileg. De N. S. Senhora da Oliveira» in Boletim de Trabalhos Históricos, Guimarães. AMAP, Volume V.