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Ser cristão-novo em Portugal: entre a memória e o esquecimento

(Artigo 6)

Isabel dos Guimarães Sá
Departamento de História e Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho

Relembre-se o contexto da transformação dos judeus em cristãos-novos.[1] Em finais de 1496, o rei D. Manuel I promulgou um édito de expulsão, que obrigava os judeus do reino a converter-se ou a abandonar o território português. Nos dois anos seguintes, seguir-se-ia uma vaga de batismos forçados para muitos, mas as cenas de violência sucederam-se para os que se tinham agregado no terreno das traseiras do paço dos Estaus, em Lisboa, esperando embarcar para fora do Reino (Soyer 2007). A expulsão obedecia às vicissitudes da política matrimonial conjunta que desenvolvia com Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os Reis Católicos. Isabel, a primogénita destes, colocara como condição sine qua non a sua expulsão para casar com o rei. Parece ter sido uma exigência pessoal da princesa, que assentava como uma luva nas estratégias de exclusão das minorias religiosas desenvolvidas pelos seus pais através da expulsão dos judeus dos reinos de Castela e Aragão em 1492. A princesa, viúva do malogrado herdeiro do trono português, parece nunca ter ultrapassado o choque da morte do príncipe D. Afonso. É reportada por Pedro Mártir de Anglería, italiano a viver na corte dos Reis Católicos, como não tendo voltado a comer à mesa, entre outras práticas penitenciais que debilitaram a sua saúde. Como se sabe, morreria horas depois de dar à luz D. Miguel da Paz em Saragoça, seu filho e de D. Manuel I.

A historiografia é consensual em afirmar que o rei português desenvolveu uma política oscilante face aos judeus, cuja saída evitou a todo o custo, acabando por promulgar um alvará em que os isentava de perseguições religiosas na sequência do batismo forçado a que estes foram sujeitos. Durante vinte anos, não seriam perseguidos por delitos de fé. Nessas circunstâncias, não admira que muitos antigos judeus tenham conservado a sua religião hebraica. Com a instalação da Inquisição a partir de 1536 seriam objeto de perseguição, e, posteriormente, com a sedimentação da limpeza de sangue, discriminados face aos cristãos velhos (Bethencourt 2020). Os candidatos a ingressar nas ordens religiosas, na universidade de Coimbra, e aos ofícios da coroa, passariam a fazer prova de limpeza de sangue. Cada instituição promulgou a obrigatoriedade dessas “provanças” ou “habilitações” em datas diversificadas, o que levou à exclusão jurídica gradual dos cristãos-novos da maior parte das ocupações e ofícios públicos (Olival 2004; Rêgo 2011).

As opiniões dos historiadores dividem-se no que respeita à manutenção da religião judaica depois de 1497: para Révah (1962) muitos judeus teriam mantido a sua religião em segredo, enquanto José António Saraiva considerava que as acusações de judaísmo elaboradas pelos inquisidores seriam destituídas de verosimilhança, por serem repetitivas e padronizadas (Saraiva 2019). Um importante artigo de Robert Rowland (2010) veio dar força a esta última tese, uma vez que o seu autor argumentou que os casamentos mistos entre cristãos novos e velhos aumentaram o número de pessoas com origens hebraicas. O livro de Nathan Wachtel, A Fé na Lembrança (2003), chamou a atenção para a desagregação do culto judaico, que não podia manter-se num contexto de perseguição, embora a descendência das antigas famílias judaicas conservasse uma memória vaga, por vezes imprecisa, mas intensa, dos hábitos culturais das comunidades a que os seus antepassados tinham pertencido. Nesse contexto, caberia sobretudo às mulheres, pelo seu papel na educação das novas gerações, a transmissão dessas lembranças, embora num contexto de ausência de culto organizado, uma vez que já não havia rabis para ler a Torah ou implementar as práticas judaicas.

O criptojudaísmo firmar-se-ia na família e nas mulheres, e desenvolver-se-ia em segredo, mas não é certo que todas as antigas famílias judaicas o conservassem, porque muitas optaram pela assimilação às comunidades cristãs-velhas. Ainda, estas duas atitudes podiam coexistir no interior de uma mesma parentela. A incorporação, contudo, deparou com obstáculos, entre os quais a limpeza de sangue, de que adiante falaremos. A Inquisição, criada a partir de 1536, perseguiu os cristãos-novos acusando-os de observar em segredo a lei de Moisés (embora o pudessem ser também dos outros delitos da sua jurisdição). Cada instituição procurou certificar-se de que não admitia pessoas de sangue judeu nas suas fileiras, dando origem a uma multiplicidade de datas, que, ainda para mais, nem sempre foram seguidas por uma implementação total e imediata. Foi o caso das Misericórdias, que proibiram a admissão de membros cristãos-novos no compromisso de 1577, mas cuja ação em prol da segregação se desenvolvia antes dessa data. Contudo, ainda em meados do século XVII estas irmandades admitiam cristãos-novos nas suas fileiras, sobretudo médicos, porque faziam falta à cura de doentes no hospital.

A segregação dos cristãos-novos através da limpeza de sangue é responsável pela sua quase completa exclusão de todos os ofícios públicos: as Universidades não os queriam deixar entrar, as ordens religiosas foram uma a uma segregando-os. Entre elas, cabe referir o caso dos jesuítas, em que o seu fundador, Inácio de Loiola, ele próprio cristão-novo, procurou impedir a proibição de entrada de cristãos-novos. O segundo geral da Companhia de Jesus, Diego Lainez também era cristão-novo, e esta ordem foi das últimas a barrar os cristãos-novos das suas fileiras (Israel 2023). A exclusão de quase todas as profissões fez com que os cristãos-novos se dedicassem ao comércio, pequeno e grande, praticamente a única atividade que podiam praticar sem ser sujeitos a provas de limpeza de sangue.

Para desenvolver as suas atividades comerciais, sobretudo nos meios do comércio marítimo, os cristãos-novos desenvolveram redes familiares a nível planetário. Havia cristãos-novos em Bordéus, Antuérpia, Amesterdão, Hamburgo. Instalaram-se também em Madrid e Sevilha, onde obtinham junto das instituições da coroa as indispensáveis licenças para transportar escravizados africanos para a América Espanhola (Vila Vilar 1977). Fixaram-se também nos vice-reinos do Peru e da Nova Espanha. Estabeleceram-se assim nos impérios ibéricos, desde o Brasil até ao Japão, pelo que se implementaram dispositivos persecutórios, desde tribunais do Santo Ofício, visitas inquisitoriais ou nomeação de comissários, a presença de cada um destes variando de acordo com a cidade considerada.

As perseguições tiveram como um dos seus resultados a extrema mobilidade dos cristãos-novos, que parece superior à dos cristãos velhos. Por muitos motivos, entre as quais a fuga às perseguições ou as políticas matrimoniais ligadas aos negócios. Era frequente uma mesma família ter membros dispersos pelos reinos ibéricos, pelos impérios e pela Europa, misturando parentes muito ricos com remediados. Os cristãos-novos manifestaram uma tendência para efetuarem casamentos consanguíneos, -embora estes também fossem comuns entre cristãos-velhos-, o que os obrigava a procurarem parceiros matrimoniais em lugares distantes. Em Amesterdão, a comunidade sefardita concedia dotes de casamento que angariavam noivos e noivas bastante longe, porque os negócios eram sobretudo familiares, e tornava-se necessário assegurar agentes em diferentes pontos do globo.

Fora destes meios dos grandes negócios, estudados recentemente por Francisco Bethencourt (2024), os cristãos-novos que ficaram em território português sobreviviam de forma precária: limpavam a mancha de sangue através da fraude genealógica, subornavam agentes da autoridade, faziam conluios com testemunhas, ou permaneciam solteiros para evitar confrontarem-se com a fama de cristã-novice. Creio que a memória social fosse muito mais profunda no período moderno do que hoje. As pessoas projetavam as suas recordações para tempos muito recuados, correspondendo a duzentos anos e mais (da mesma forma que operava a “fé na lembrança” de que falou Wachtel, e eram capazes, de se lembrar das famílias com ascendência judaica. Creio que isso também tinha a ver com lugares, famílias que conservavam os mesmos locais de residência ao longo do tempo, embora muitos dos seus membros emigrassem. Hoje em dia, o máximo que recuamos é geralmente aos bisavós, por vezes os trisavós, mas nessa altura as pessoas sabiam, por memória oral que se prolongava no tempo, quem eram as famílias com “mancha”.

A historiografia sobre as comunidades cristãs tem muitos cultores na Europa e na América, em grande parte associada a historiadores de origem judaica. Todavia, a identificação dos cristãos-novos é muitas vezes imprecisa, porque estes são identificados de forma conjunta, sem trabalhar sobre um leque de fontes documentais que poderia informar com mais precisão sobre a descendência dos primitivos judeus. No que toca ao estudo dos negociantes, muitos desses trabalhos procedem como se não houvesse cristãos-velhos entre os mercadores de grosso trato, englobando-os no mesmo grupo, até porque para espanhóis e outros europeus dos séculos XVI e XVII, a “gente de nação” podia designar os portugueses em geral, cristãos velhos e novos, embora o termo se aplicasse com maior justeza aos cristãos-novos (Studnicki-Gizbert 2007).

Esse trabalho de pesquisa pode ser feito a partir dos registos paroquiais, embora estes sejam posteriores aos batismos forçados de 1497. Os batismos compulsórios de então obrigaram os judeus e judias a obliterar os seus nomes, trocando-os por apelidos cristãos. Mais ainda, desconhecem-se os critérios de escolha dos apelidos que tomaram a partir dessa data. Só depois de 1564, com a promulgação dos decretos tridentinos em Portugal, os registos paroquiais passaram a ser obrigatórios. Esse hiato documental dificulta o apuramento do início das linhagens cristãs-novas, agravado pelo facto de muitos das paróquias só terem cumprido essa determinação conciliar muito tarde, a par de prováveis perdas documentais que algumas freguesias possam ter sofrido. Todavia, os processos das Inquisições de Lisboa, Coimbra e Évora (em número de quarenta e cinco mil entre 1536 e 1767), incluíam uma indagação genealógica sobre a família dos cristãos-novos acusados, e a partir dessas informações podemos cruzá-las em alguns casos com os registos paroquiais.

Também podemos usar como fontes as provanças ou habilitações em que cada pessoa se candidatava a uma instituição, correspondentes a inquéritos onde a limpeza de sangue era atestada por testemunhas residentes nos lugares de origem ou de morada dos requerentes. Temos ainda, toda a documentação, em geral notarial, em que estas pessoas participaram (escrituras de dote, dívida, procurações, contratos comerciais, testamentos). Embora muitas fontes documentais estejam agora disponíveis por via digital, o cruzamento entre estas constitui um trabalho árduo, e poucos o empreenderam até hoje a nível de uma localidade, ficando-se por famílias específicas.

Uma das recentes tendências historiográficas consiste em colocar a identificação de pessoas e o estudo das suas trajetórias no centro da investigação, o que permitirá trazer dados novos. Só este tipo de estudos permitirá esclarecer estratégias de sobrevivência destas famílias, bem como uma comparação, no caso das comunidades mercantis, entre o comportamento entre negociantes cristãos-novos e cristãos-velhos. Hoje a historiografia tenta fazer justiça aos oprimidos da História, e o estudo dos escravizados, e das minorias, por outro, tem recebido atenção preferencial. Os cristãos-novos constituem uma delas. Reconhecemos desde Foucault a importância dos micro poderes, em que as relações de força em determinadas configurações são essenciais para compreender processos históricos. A aniquilação ou assimilação de muitos cristãos-novos parece ter estado dependente de momentos específicos, em que um conjunto de circunstâncias ditava o seu desenlace. Episódios como uma discussão, uma desavença pública entre pessoas, simples inveja, ou competição por recursos, podiam ditar as denúncias à Inquisição. Em contrapartida, para assegurar alguma sobrevivência, talvez precária, era importante aproveitar momentos favoráveis: a possibilidade de subornar testemunhas num processo de provança; influenciar o trabalho de um genealogista; aproveitar uma ocasião favorável para fazer um casamento com um cristão-velho; ser solicitado para fazer um empréstimo de dinheiro e pedir favores em contrapartida. O que motivou o sucesso dos cristãos-novos cujas estratégias de integração individuais foram bem sucedidas?

O livro de Stuart Schwartz, intitulado All can be saved: religious tolerance and salvation in the Iberian Atlantic world, de 2010, sugere que muitas pessoas consideravam que qualquer um se podia salvar na sua fé. Para este autor, a tolerância existia nesta sociedade, ainda que nem sempre, em simultâneo com os referidos dispositivos persecutórios. O autor recenseou numerosos depoimentos segundo os quais as pessoas consideravam, à revelia da doutrina ortodoxa católica, que podia haver salvação fora da igreja de Roma. Então, podemos perguntar: porque é que havia tantas denúncias contra cristãos-novos? A resposta pode residir na luta por recursos económicos, políticos e sociais que despoletava a conflitualidade destas sociedades. Para ser perseguido não bastava ter origem judaica: era necessário que alguém acionasse os dispositivos de perseguição. Em muitos casos, a comunidade local preferia não o fazer. Como é que se explica que alguns só fossem perseguidos depois de uma permanência de décadas em determinada localidade, e outros nunca o tivessem sido? A resposta talvez resida em estudar casos concretos, não apenas em função das circunstâncias pessoais de cada visado, mas também das configurações económicas e políticas locais.

Isabel dos Guimarães Sá — Departamento de História e Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho

NOTA DE FIM

[1] O presente trabalho corresponde a uma pequena intervenção numa mesa redonda subordinada ao tema “Os Apelidos das Comunidades à Margem” na Casa da Memória de Guimarães a 28 de setembro de 2024, a convite do Dr. Rui Faria, em que se focaram aspetos gerais da discriminação contra minorias no período moderno.

REFERÊNCIAS

 

Bethencourt, Francisco. 2000. ‘Rejeições e Polémicas’. In História Religiosa de Portugal, Ed. C. Moreira Azevedo, 49–94. Lisboa: Círculo de Leitores.

———. 2020. ‘1536. A Inquisição chega a Portugal’. In História global de Portugal, edited by Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco, and José Pedro Paiva, 373–78. Lisboa: Temas e Debates.

———. 2024. Strangers within: The Rise and Fall of the New Christian Trading Elite. Princeton: Princeton University Press.

Israel, Jonathan Irvine. 2023. Spinoza, Life and Legacy. Oxford: Oxford University Press.

Olival, Fernanda. 2004. ‘Rigor e Interesses: Os Estatutos de Limpeza de Sangue Em Portugal’. Cadernos de Estudos Sefarditas, no. 4, 151–82.

Rêgo, João de Figueirôa. 2011. A Honra Alheia Por Um Fio: Os Estatutos de Limpeza de Sangue Nos Espaços de Expressão Ibérica, Sécs. XVI-XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Révah. 1962. ‘La Religion d’Uriel Da Costa, Marrane de Porto (d’après Des Documents Inédits)’. Revue de l’Histoire Des Religions tome 161 (1): 45–76. https://doi.org/10.3406/rhr.1962.7731.

Rowland, Robert. 2010. ‘Cristãos-Novos, Marranos e Judeus No Espelho Da Inquisição’. Topoi (Rio de Janeiro) 11 (20): 172–88. https://doi.org/10.1590/2237-101X011020012.

Saraiva, António José. 2019. Inquisição e Cristãos-Novos. 5th ed. Lisboa: Gradiva.

Soyer, François. 2007. The Persecution of the Jews and Muslims of Portugal: King Manuel I and the End of Religious Tolerance (1496-7). Leiden; Boston: Brill.

Studnicki-Gizbert, Daviken. 2007. A Nation upon the Ocean Sea: Portugal’s Atlantic Diaspora and the Crisis of the Spanish Empire, 1492-1640. Oxford: Oxford University Press.

Trivellato, Francesca. 2020. Familiaridade entre Estranhos: a diáspora sefardita, Livorno e comércio transcultural na Idade Moderna. Lisboa: Edições 70.

Vila Vilar, Enriqueta. 1977. Hispanoamérica y El Comercio de Esclavos. Sevilla: CSIC. https://digital.csic.es/handle/10261/272611.

Wachtel. 2003. A Fé Da Lembrança. Labirintos Marranos. Lisboa: Editorial Caminho.