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A democratização da Genealogia e o papel das redes de contacto online: o caso particular do GenealogiaFB

(Artigo 4)

Maria do Céu Barros
Licenciada em História

Globalmente, a Genealogia é uma das atividades históricas mais comuns de ocupação dos tempos livres, com milhões de pessoas que se dedicam ao estudo das suas famílias. Em Portugal, a massificação do acesso à internet aumentou o interesse pela história da família, aproximando dos arquivos e das publicações científicas os indivíduos que, quer por um horário laboral incompatível quer pela sua formação escolar ou profissional, estavam arredadas desses meios. A estes novos interesses, os Arquivos têm sabido corresponder com uma política de digitalização e divulgação online dos seus acervos documentais, contribuindo para a preservação do património documental e para a democratização cultural. No entanto, trata-se de documentação histórica que requer a aquisição sistemática de conhecimentos e habilidades que a maioria não possuí quando inicia a sua pesquisa. No caso português, esta realidade apresenta-se ainda mais limitadora dada a quase inexistência de manuais impressos adequados à realidade portuguesa[1].

As redes de contacto online, ao possibilitarem a reunião de grupos de pessoas que partilham informações, conhecimento e experiências em torno de variadíssimos aspetos relacionados com a Genealogia, são o principal recurso do genealogista, desde o iniciante ao profissional, desde o curioso ao historiador. Existem diferentes níveis de qualidade na informação veiculada por estas redes, facto a que o iniciante deverá estar atento. Algumas cultivam o rigor na construção de uma Genealogia credível e não elitista, sem preconceitos em relação às origens e nível cultural de cada um, constituindo, por isso, um dos principais meios através dos quais a democratização da genealogia se concretiza na prática.

 

Árvore com a descendência do capitão Pedro Arias de Aguirre e de sua mulher Catarina Coresma. ANTT, TSO-CG, Habilitações Incompletas, doc. 4104,1729. fl.7.

O projeto GenealogiaFB é uma dessas redes de contacto. Começou com um pequeno grupo criado numa rede social com o objetivo principal de promover a entreajuda e simplificar a pesquisa genealógica em Portugal. Essa ajuda mútua inclui a orientação para os primeiros passos (como começar e como passar ao passo seguinte), a leitura paleográfica e interpretação da informação, a informatização da pesquisa, a utilização de ferramentas e todo o tipo de dúvidas que possam surgir.

Na base da sua criação estiveram as dificuldades sentidas na localização e aproveitamento de fontes devido à ausência de referências facilitadoras da sua consulta. A fim de agilizar o seu uso, deu-se início à indexação de alguma da documentação mais relevante, apelando à comunidade, que, entretanto, foi crescendo em torno deste projeto, a partilha dos trabalhos que eles próprios iam realizando. Face à resposta muito positiva, o passo seguinte foi organizar e preservar toda essa informação num blogue, o qual rapidamente passou a abranger outras temáticas relacionadas[2]. Exemplos disso são os dicionários de profissões e de abreviaturas paleográficas, coletâneas de hiperligações para recursos difíceis de encontrar, como a descrição de fundos de alguns arquivos municipais, ou para pesquisas além-fronteiras, tutoriais, divulgação de trabalhos académicos e muitos outros recursos. A tudo isto juntam-se as curiosidades e os episódios do passado em que vamos tropeçando e que, de uma forma ou outra, nos tocam, iluminando vivências, espaços e mentalidades.

Selecionar um trabalho exemplificador é uma tarefa difícil porque todos nos parecem importantes, mas destacaria os índices dos boletins militares dos combatentes do Corpo Expedicionário Português. A indexação foi realizada pelo Arquivo Histórico Militar, através do seu projeto GERMIL (Genealogia em Registos Militares). Porém, a sua consulta era muito difícil devido à grande lentidão e avarias constantes do seu servidor, assim como à insuficiente identificação da origem dos combatentes. O nosso trabalho consistiu na elaboração de listas de todos os nomes e a sua distribuição por origem geográfica. As lacunas foram preenchidas com recurso aos próprios boletins, mapas, dicionários geográficos e bibliografia diversa. Contámos ainda com a colaboração de familiares dos combatentes e de pessoas que se dedicam à história local. Este trabalho permitiu a diversas localidades reconstituírem a história dos seus naturais que combateram na 1.ª Grande Guerra e prestar-lhes a devida homenagem. Foram inúmeras as mensagens de agradecimento recebidas de pessoas, nem todas genealogistas, que, com muita emoção, puderam aí, e nas páginas da História, encontrar os avós e bisavós.

Soldados na frente portuguesa, França c. 1917-1918 – Fotografia de Arnaldo Garcez. Arquivo Histórico Militar.

Uma das maiores preocupações tem sido divulgar fontes documentais e bibliografia que permitam a reconstrução contextualizada das gerações passadas, tendo sempre presente o rigor e a verdade histórica – o projeto GenealogiaFB procura estimular a aproximação dos genealogistas às metodologias e bibliografia científicas. Os livros paroquiais são essenciais à elaboração de qualquer genealogia, mas, devido às suas lacunas, são insuficientes quando se trata de contextualizar a “arquitetura” genealógica ou de acrescentar ou cruzar informação. É essencial consultar a documentação relacionada com a propriedade, a justiça, a educação, a vida eclesiástica, a emigração, a fiscalidade, o poder concelhio, enfim, tudo aquilo onde os nossos avós possam ter deixado as suas pegadas, por muito humildes que fossem. A ideia de que apenas a nobreza e a família real deixaram rastro na documentação histórica foi já desmontada pela historiografia nas suas diversas áreas de especialidade[3].

O englobamento dessa diversidade de fontes permite ir além do mero encadear de gerações numa árvore genealógica, preenchendo esse «esqueleto» com a história de cada indivíduo ou família, integrando-o no seu contexto histórico. Nesse sentido, procura-se estabelecer linhas de contato com os arquivos, dando conta do interesse da comunidade na digitalização dessa documentação e das dificuldades sentidas no acesso às fontes. Por outro lado, alguns arquivos estão conscientes do potencial deste tipo de projetos e procuram, através deles, divulgar o seu trabalho e captar o público para iniciativas próprias, como, por exemplo, a colaboração na indexação dos livros paroquiais que tutelam. O projeto é, assim, o resultado de um coletivo em que o genealogista não se limita a consumir conhecimento. Também o produz e partilha com a comunidade, levando essa democratização mais longe.

Atualmente, o projeto GenealogiaFB é dirigido maioritariamente pela Paula Peixoto, uma das suas fundadoras, e conta com mais de dez mil membros de origens geográficas e socioprofissionais diversas, o que é uma mais-valia, uma vez que há sempre alguém com currículo em áreas especializadas que contribuí com o seu conhecimento.

 

Da perspetiva das redes de contacto e deste projeto em particular, a Genealogia é uma interação amadora com o passado, uma forma de consumo da História que, por se tratar de uma história personalizada, envolve aspetos simbólicos e emotivos de relacionamento com o passado. É uma história através da qual o indivíduo se conhece, mas também a sua relação com a família, com a sua nacionalidade e com a sua identidade. Há uma maior consciência e sensibilidade em relação à preservação do património material e imaterial, sobretudo no que se refere aos que, devido a uma condição económica e social que os coloca fora dos patamares do poder, estão mais sujeitos ao esquecimento. Tropeçar no grande leque dos excluídos (escravos, mouros, índios, ciganos, migrantes, trabalhadores sem estatuto…), suscita grande interesse por essas vozes, já não vistos somente como objetos, mas também como sujeitos da História.

Através das redes de contato online, o genealogista interessado na verdade dos factos não só progride no conhecimento da sua história de família, como na dos outros, incluindo-se e reconhecendo-se na pluralidade de contextos, culturas, religiões e etnias que formam o tecido social. Podemos, assim, falar de uma democratização que ultrapassa o acesso às fontes, sem esquecer que a história da família se integra no plano mais alargado da democratização da prática da História[4].

Maria do Céu Barros — Licenciada em História

NOTAS DE FIM

 

[1] Em Portugal foi publicado um manual de genealogia que constituí a única referência impressa atualizada e adequada ao contexto português: Queiroz, Francisco, e Cristina Moscatel. Descubra as suas origens: manual de Genealogia e História da Família. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2016.

[2] Disponível em https://genealogiafb.blogspot.com/

[3] Veja-se, por exemplo, Marques, A. H. de Oliveira. «História genealógica do homem comum: micro-história ou macro-história?» História: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto 4 (2003): 173–86, https://ojs.letras.up.pt/index.php/historia/article/view/5101.

[4] Groot, Jerome de. «International Federation for Public History Plenary Address: On Genealogy». The Public Historian 37, n.º 3 (2015): 102–27. https://doi.org/10.1525/tph.2015.37.3.102.